Futebol é mais que um jogo (por Paulo-Roberto Andel)

(sobre uma conversa com André Luiz Amaral Horta e Marcelo de Carvalho)
@p.r.andel

Nunca vai ser só futebol. Não tem como ser apenas futebol. Há muito mais do que uma arquibancada em volta. Há gente, há histórias, há sentimentos, lembranças e saudade. Há paixão. Pode ser o garotinho de mãos dadas com seu pai. Pode ser o grupo de molequinhos felizes da vida porque ganharam o ingresso e, por isso, sobem a rampa do Maracanã enlouquecidos de alegria. Ou o velho sábio que tudo viu, e que espia a arquibancada abrindo a cortina do passado. A jovem senhora que, num passado não tão distante, embeveceu os olhares com sua beleza de poesia. O garoto camelô de bebidas sonhando com um mundo melhor. O velhinho carregando uma pesada caixa de isopor. Nunca vai ser só futebol porque os amigos reunidos num bar fitam a tela da TV como se fossem crianças e, num pulo, reveem seus amores, lembranças e ausências enquanto seu time corre em campo. Lembram dos ídolos com a mesma veemência que recordam dos perebas. Grandes lances e jogos são cardápio da memória. O futebol está eternizado em botões que mais parecem gente. Nunca vai ser só futebol porque o jogo faz os ateus ficarem perto de Deus, porque os inimigos dividem as mesmas cores por uma causa e descobrem que são mais parecidos do que gostariam. Futebol é o preto e o branco abraçados comemorando o mesmo gol, o gordo e o magro, o rico e o pobre, o gay e o hetero, todos juntos como se o mundo fosse bom fora dali. Futebol é Pelé parando uma guerra para que todos pudessem vê-lo em campo. Os doentes nos hospitais apaixonados ouvindo o radinho de pilha ou espiando uma pequena TV. No alto da favela tem um garotinho completamente apaixonado por futebol e que vai fazer de tudo pará ser um craque de verdade. Futebol para o mundo inteiro chorar a morte precoce dos irmãos Jota, para aplaudir o incrível Fluminense cuja força nunca seca. O futebol é o único lugar onde o pobre tem vez, onde o fraco tem força e que ampara milhões e milhões de corações pelo mundo afora, dando esperanças, evitando suicídios, deixando os corações solitários mais perto do amor. Ah, as crianças correndo loucamente atrás da bola numa vila, num campinho ou na areia da praia, todas sonhando com idolatria. Quando para uma vez por ano na TV, o futebol deixa os domingos vazios e um torcedor se lembra dos versos de um poeta inesquecível: “quando não estás aqui/meu espírito se perde/voa longe.”

Um silêncio tricolor (por Paulo-Roberto Andel)

Meu amigo era uma boa pessoa. Cometeu erros como todos nós, mas era uma pessoa de bom coração. Conhecia muito rock.

Nós nos conhecemos na rua, por causa do Fluminense em 2012. Eu estava com uma bandeira ou camisa, ele imediatamente puxou conversa. Cuidava dos carros na região onde eu ia regularmente.

Sua história de torcedor desafiava definições. Ele era Flamengo, mas se indignou quando um amigo seu foi dispensado da Gávea e foi para Laranjeiras. Virou tricolor. O amigo foi campeão e depois saiu, mas ele ficou para sempre.

O maior desafio foi sua própria vida. Sofreu, sofreu, sofreu. Não conheceu o pai ao certo, talvez o avô fosse o verdadeiro pai, que ele adorava. Rejeitado pelos familiares, veio para o Rio. Começou o pagamento de uma pena. Era alto, bonito, acabou caindo na prostituição hard e no mar de cocaína. Foi esmigalhado e acabou em situação de rua. E aguentou uns vinte anos, até conseguir condições para circular pelas hospedagens baratas. Tinha toneladas de histórias sobre este difícil desafio. Dava um filme.

Seu amor pelo Fluminense era puro. Não ia aos jogos, não tinha TV, tudo era no radinho de pilha e nas espiadas das manchetes. Depois a internet ajudou bastante. Eu poderia ter ajudado mais, porém só descobri bem depois.

Nos últimos anos nos falamos muitas e muitas vezes. Ajudei como pude. E muitas vezes eu sofri demais, quando a única mensagem de boa noite e de fé em Deus era dele. Isso aconteceu muitas e muitas vezes. Falávamos de rock e Fluminense, ele era informado, atento, mas as dificuldades da vida o tornaram invisível para muita gente. Muita gente boa que precisou de mim me deu um pé na bunda; ele, que eu ajudei tão pouco, estava ali fiel da silva. Um bom homem, que sofreu demais desde garoto.

Ano passado o Flu estava com o pescoço na guilhotina, mas nos salvamos no último jogo em dezembro. Ficamos felizes. O futebol é uma migalhinha de esperança, uma esmolinha de alegria que salva a vida de muita gente – já salvou a minha várias vezes – por favor, não insista com a estupidez de que futebol é só um monte de homens e mulheres correndo atrás de uma bola, há muito mais do que isso em jogo. O Fluminense o acompanhou nas piores horas na calçada, nas estrebarias baratas, na luta do dia a dia pela sobrevivência, nessa vida tão cheia de injustiça e desencontro por toda parte. Ele queria pouco: uma casa, uma namorada, uma família. Não foi possível. Que merda essa vida onde a gente quer só um pouco de paz e não consegue!

Às vezes ele sumia por uns dias. Era geralmente um problema no smartphone. Passava uma semana, no máximo duas e lá estavam de volta às mensagens sobre rock, o Fluminense, e a bondade cristã. Mas o ano virou e alguma coisa coisa aconteceu. Nenhuma mensagem, nenhum áudio, nenhuma resposta, nenhum sinal e nenhuma chance de recorrer a alguém que pudesse dar qualquer notícia, por pior que fosse. Então os dias viraram semanas, as semanas viraram meses, o Fluminense de quase rebaixado pode ser semifinalista do Mundial mas tudo o que vejo naquela caixinha de conversa é um profundo e rascante silêncio. Não era para ter sido assim. Quem perdeu um amigo entende esse jogo.

@p.r.andel

Essa coisa da vitória tricolor (por Paulo-Roberto Andel)

I

Foi bom demais nesta segunda-feira. O Fluminense fez seu papel mais apurado, o de mosca na sopa, e venceu a poderosa Internazionale de Milano para a surpresa de muitos desavisados. Quando o jogo acabou, passei um bom tempo respondendo a mensagens de congratulações pela vitória. E aí veio gente a granel. Desde cedo, sou lembrado por muita gente como um exemplar tricolor, nos tempos da escola e do grupo escoteiro vindo até hoje. No WhatsApp apareceu gente de todos os lados: colegas tricolores que não vejo há tempos, pessoas admiráveis, crushs, amigos e colegas que torcem para outros times, teve até ex-namoradas. Será que também fui lembrado por quem não fala mais comigo ou que me esqueceu/despreza? É possível. Minha ligação sentimental com o Fluminense é muito forte, então até quem me detesta deve ter se lembrado de mim quando Hércules fechou o marcador. O futebol oferece uma fraternidade que não se vê em mais nenhum outro traço da vida brasileira. Por alguns instantes isso é bom e aquece a alma, dá um alívio para encarar o dia seguinte cheio de dúvidas e problemas, literalmente ajuda a viver. O futebol, ainda que com todos os seus problemas extracampo, é um dos traços mais bonitos da identidade brasileira. Mesmo que virtualmente, os abraços e parabéns mostram que ainda há uma gotinha de salvação. Bom, agora é o dia seguinte, uma terça-feira nublada, a rijeza do trabalho, os dissabores da vida adulta e lá vamos nós, tricolores, marcando um novo encontro para sexta-feira e tentando reviver por algumas horas o Reino do Nunca.

II

Eu estou contente. Meu Fluminense venceu. Só lamento não ser criança hoje, do jeito que eu era com 11 e 12 anos em 1980. Poder levar um botão da sorte para a escola, comemorar na hora do recreio, marcar uma pelada na vila depois do almoço, sonhar em jogar num campo oficial de grama, feito o do 18. Ficar espiando a revista Placar, a ficha dos jogos, as fotos e as matérias. Juntar o troco do lanche para comprar um escudo bordado do Fluzão. Se eu estivesse em Copacabana em 1980 ia comemorar com o Léo e o Rubinho, com os gêmeos, ia procurar o Fábio na esquina da Santa Clara para comemorar – ele tinha um timaço de galalite do Flu. Depois iria para a praia jogar bola e imitar Edinho ou Gilberto, ou Cláudio Adão – ele era infernal feito Arias e Cano.

Agora também é bom, mas é ser diferente. O tempo, senhor implacável, escorreu com enorme velocidade. Quarenta e cinco anos escorreram feito filete d’água no ralo da pia. E você está inevitavelmente mais perto do fim do que do começo. Mas ainda pode e deve ser muito divertido. Nessa terra de tanto egoísmo e ruindade, o futebol ainda é uma benção. O Fluminense venceu e isso nos ajuda a respirar melhor. Nós, tricolores, estamos iguais aos personagens da letra de “Mais do mesmo”, feita pelo ícone tricolor Renato Russo: “enquanto isso na enfermaria/ todos os doentes estão cantando/ sucessos populares”. Ou ainda outro mestre das três cores, Tom Jobim: “os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender”.

Onde está minha lancheira do Fluminense?

@p.r.andel