Meu amigo era uma boa pessoa. Cometeu erros como todos nós, mas era uma pessoa de bom coração. Conhecia muito rock.
Nós nos conhecemos na rua, por causa do Fluminense em 2012. Eu estava com uma bandeira ou camisa, ele imediatamente puxou conversa. Cuidava dos carros na região onde eu ia regularmente.
Sua história de torcedor desafiava definições. Ele era Flamengo, mas se indignou quando um amigo seu foi dispensado da Gávea e foi para Laranjeiras. Virou tricolor. O amigo foi campeão e depois saiu, mas ele ficou para sempre.
O maior desafio foi sua própria vida. Sofreu, sofreu, sofreu. Não conheceu o pai ao certo, talvez o avô fosse o verdadeiro pai, que ele adorava. Rejeitado pelos familiares, veio para o Rio. Começou o pagamento de uma pena. Era alto, bonito, acabou caindo na prostituição hard e no mar de cocaína. Foi esmigalhado e acabou em situação de rua. E aguentou uns vinte anos, até conseguir condições para circular pelas hospedagens baratas. Tinha toneladas de histórias sobre este difícil desafio. Dava um filme.
Seu amor pelo Fluminense era puro. Não ia aos jogos, não tinha TV, tudo era no radinho de pilha e nas espiadas das manchetes. Depois a internet ajudou bastante. Eu poderia ter ajudado mais, porém só descobri bem depois.
Nos últimos anos nos falamos muitas e muitas vezes. Ajudei como pude. E muitas vezes eu sofri demais, quando a única mensagem de boa noite e de fé em Deus era dele. Isso aconteceu muitas e muitas vezes. Falávamos de rock e Fluminense, ele era informado, atento, mas as dificuldades da vida o tornaram invisível para muita gente. Muita gente boa que precisou de mim me deu um pé na bunda; ele, que eu ajudei tão pouco, estava ali fiel da silva. Um bom homem, que sofreu demais desde garoto.
Ano passado o Flu estava com o pescoço na guilhotina, mas nos salvamos no último jogo em dezembro. Ficamos felizes. O futebol é uma migalhinha de esperança, uma esmolinha de alegria que salva a vida de muita gente – já salvou a minha várias vezes – por favor, não insista com a estupidez de que futebol é só um monte de homens e mulheres correndo atrás de uma bola, há muito mais do que isso em jogo. O Fluminense o acompanhou nas piores horas na calçada, nas estrebarias baratas, na luta do dia a dia pela sobrevivência, nessa vida tão cheia de injustiça e desencontro por toda parte. Ele queria pouco: uma casa, uma namorada, uma família. Não foi possível. Que merda essa vida onde a gente quer só um pouco de paz e não consegue!
Às vezes ele sumia por uns dias. Era geralmente um problema no smartphone. Passava uma semana, no máximo duas e lá estavam de volta às mensagens sobre rock, o Fluminense, e a bondade cristã. Mas o ano virou e alguma coisa coisa aconteceu. Nenhuma mensagem, nenhum áudio, nenhuma resposta, nenhum sinal e nenhuma chance de recorrer a alguém que pudesse dar qualquer notícia, por pior que fosse. Então os dias viraram semanas, as semanas viraram meses, o Fluminense de quase rebaixado pode ser semifinalista do Mundial mas tudo o que vejo naquela caixinha de conversa é um profundo e rascante silêncio. Não era para ter sido assim. Quem perdeu um amigo entende esse jogo.
@p.r.andel