Vem aí mais um Fla x Flu. Na verdade dois, pela decisão do Campeonato Carioca de 2023, nos próximos dois finais de semana.
Para o maior cronista do futebol brasileiro em todos os tempos, Nelson Rodrigues, o grande clássico inventou a multidão quando o Rio de Janeiro era uma cidade triste, de ruas vazias. Assim foi em muitos jogos eletrizantes na rua Paissandu e no Estádio das Laranjeiras, depois na Gávea e finalmente no Maracanã, seu habitat natural desde 1950. E como o Fla x Flu envolve até as relações familiares, Nelson Rodrigues tinha um grande cronista rival dentro da própria casa: Mário Filho.
Muita coisa mudou, para não dizer tudo: os próprios Rio de Janeiro e Maracanã, hoje muito diferentes de outrora. O Fla x Flu, que facilmente levava 140 ou 120 mil pessoas às arquibancadas, cadeiras e geral, hoje não passa de 70 mil até porque o estádio não disponibiliza todos os ingressos. Mesmo assim, estará lotado pelo contraste das cores e gritos. Todos os bares, biroscas e congêneres estarão cheios de olhinhos atentos à TV, suspirando por jogadas que, de alguma forma, celebrem o futebol de Romeu Pelicciari, Dida, Waldo, Silva, Rivellino, Zico, Ézio e tantas outras feras que escreveram a história desse clássico imortal, único no mundo pela quantidade de gente que já levou ao campo e também porque é o único nascido de uma cisão no ventre: o futebol rubro-negro nasceu de uma dissidência dentro da casa tricolor, como se sabe.
Os homens de 55 anos carregam para sempre os Fla x Flus abarrotados no fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Só nesse pequeno intervalo, jogos antológicos tiveram a assinatura eterna de nomes como Cristóvão, Tita, Paulo Goulart, Luiz Fumanchu, Lico, Nunes (para os dois lados) e, claro, Assis, dentre outros. Já os de 65 primaveras vão se lembrar de Félix, Samarone, Paulo Henrique, Fio Maravilha, Flávio Minuano e grande elenco. Os nonagenários viram tudo que aconteceu no grande Fla x Flu de 1941. E quem já não está mais aqui viu o clássico nascer em 1912. Mas será que não está? Quando o Fla x Flu acontece no Maracanã cheio, parece que tem um milhão de pessoas presentes, entre gente viva e morta, gente que persegue o combate entre as duas camisas para sempre. Parece que todo mundo abraça o Fla x Flu pela eternidade.
Nos últimos anos, Pedro e Gabigol, Cano e até o incrivelmente subestimado John Kennedy têm dado as cartas. A partir do próximo sábado, começará a ser escrito mais um capítulo de um livro infinito, o do jogo que nunca termina. Homens, mulheres e crianças vão gritar, sofrer, rir, chorar, sonhar e registrar momentos que serão carregados para sempre. Seja ao vivo no calor infernal do Maracanã, num restaurante sofisticado com telão ou numa sala de plantão profissional, o Fla x Flu prevalecerá. Pode ser também no radinho humílimo de um trabalhador à portaria ou num trem. Quem sabe numa mesa de botão Estrelão e seus craques de acrílico, ou numa mesa de totó num boteco metropolitano? Ou no futebol de preguinho?
As cores, os gritos, as bandeiras, os contrastes e a velha cisão de 111 anos batem seus tambores como nunca. É Fla x Flu, decisão, literatura e dramaturgia.
O tricolor e o flamenguista andam lado a lado, feito o leão e o tigre numa calçada de Nova York no texto inconfundível de Tom Wolfe. É toda a eternidade que parece ter sido escrita no frescor de ontem.