Alvorada de futebol (por Paulo-Roberto Andel)

Acordei com a TV ainda ligada na reprise de Argentina x Holanda – os hermanos já estão na final da Coupe du Monde. Espiei, levantei e bebi um copo d’água, não foi o suficiente, abri uma latinha de Fanta Guaraná e um pacotinho de amendoim. Quatro horas da manhã, eu achava o cúmulo alguém acordar à essa hora mas não sou um idiota: milhões de pessoas estão em pé neste momento rumo a ônibus e trens em busca da sobrevivência por meio do trabalho. É desumano.

Li o post da Claudia Sobral e me solidarizei. Cadê nosso sono? Eu sou uma bomba de problemas insone, prestes a explodir e tudo que não quero são discursos hipócritas em meu enterro um dia, que espero estar longe daqui. Sempre odiei a hipocrisia. O que tiver de fazer, faça logo. O resto é hipocrisia e canastrice, é discurso para boi dormir – e eu sou um boi insone.

Do nada, lembrei de Karl-Heinz Rummenigge. Um grande craque do meu tempo. Ele jogou demais. Nunca vi ninguém chamá-lo de fracassado ou covarde ou limitado porque não foi campeão mundial – seria ridículo. Onde está Rummenigge? Bom, agora Messi está redivivo – era um fracassado para muitos, com todo o ridículo desta sentença, mas a chance de fechar a carreira com a Copa do Mundo o reabilitou a ponto de muitos brasileiros louvarem-no, esquecendo-se das besteiras que diziam até um mês atrás porque essa é a vocação de parte considerável do nosso povo: dizer besteiras sem pensar. Se pensassem, teriam vergonha do que dizem. Assim, Messi voltou a ser o que era para muitos de nós, um cracaço dos maiores, o que não quer dizer que tenha superado Maradona e vários nomes brasileiros. É um grande craque e ponto.

Falo de futebol na madrugada para me entorpecer e aliviar. Sem futebol, talvez eu nem tivesse chegado até aqui. Certamente escrevo sobre muitas coisas, mas futebol é praticamente meu oxigênio. Ele alivia a dor da minha família morta, da perda de amigos, das traições dos falsos ex-amigos, da ingratidão medíocre e mesquinha, das contas que enforcam, da tristeza de ver tanta gente sofrendo o tempo todo. Sem futebol, meu suicídio seria fato consumado. É minha igreja, mas não sou fanático: apenas amo.

Deixo Rummenigge e lembro dos meus botões em 1979. Faz muito tempo. Eu ganhei um Fluminense e um Flamengo da minha mãe, comprados nas Lojas Americanas de Copacabana, bem ao lado do consultório do nosso dentista, o Dr. Amílcar no Edifício Ritz. Dois times novinhos, você colava as carinhas dos jogadores nos botões. Edinho, Pintinho, Zezé, Miranda. Já são 43 anos e penso nisso como se fosse semana passada.

Provavelmente perdi mais uma batalha para a insônia. O jeito é ligar no Hora 1, ver as mesmas notícias de ontem à noite, encarar a realidade dos fascistas impunes no terrorismo impune em Brasília. Mais um dia de muita preocupação pela frente. Mesmo assim sou um privilegiado, por incrível que pareça com as dívidas colocando meu pescoço na guilhotina: tenho um bom ventilador, uma cama confortável, um jornal na TV e posso descansar até dez da manhã, pelo menos. Eu tenho o futebol.

Atrás da cortina azulada, o dia claro dá sinais de vida. Escuto um silêncio enorme. Não há ninguém por perto, ninguém. Pensando bem, raras vezes teve. Lá vem mais um dia. Há dor, depressão e também a sorte.

Paz na terra aos homens de boa vontade. Rolam os dados. O que tiver de ser, será.

@pauloandel