(publicado originalmente em 2002 na Usina de Letras)
Fiquei observando a televisão ligada de forma ocasional. Era um jogo de bola, desses de garotos pelos quais ninguém dá nada ainda e, quando ninguém espera, oferece jogadores para ainda manter viva a chama do nosso futebol, tão combalido nos dias atuais.
Partida num estádio do interior, transmitida pela rede pública, reprisada de madrugada, o jogo correndo enquanto paralelamente eu lia jornais.
Interrompi a leitura por um instante, fitei a tela e me deparei com um tiro de meta.
Era uma jogada qualquer?
Naquele momento, o único ser vivo na tela focada à grande distância era o goleiro, um solitário goleiro com a responsabilidade de reconduzir o jogo carente de torcedores, repórteres e outros participantes – imagem que permaneceu por muitos segundos, dado um bloqueio momentâneo na transmissão.
Eis que a tela da televisão me pareceu um grande quadro, uma monumental aquarela, com aquele solitário menino estático a observar a bola e pensar em como iria chutá-la, para onde e com que força, tudo cercado pelo silêncio do estádio vazio. Mais segundos, mais silêncio, mais solidão do goleiro na tela como se ninguém mais estivesse no estádio a apreciar sua intenção, exceto eu.
Quando se pensa em futebol, é certo que muitos imaginam de imediato o grande gol, a jogada mirabolante, o passe apurado, o domínio com categoria, o drama do pênalti. O tiro de meta, meus amigos, é um importante momento marginalizado: difícil a sua consecução terminar em algum dos lances anteriormente descritos. Entretanto, não sei se pela solidão a mais ou alegria de menos, pus-me a contemplar aquela imagem congelada como um princípio de esperança – era um tiro de meta, amigos.
Naquele chute, naquela cobrança, é possível identificar até um cotidiano de nossas vidas: é do tiro de meta, após uma interrupção, que o jogo recomeça. Ali tracei na memória uma relação com minha própria vida, machucada por infortúnios que deviam sair por uma imaginária linha de fundo, representados por uma bola.
A vida, ávida por si própria, voltaria após um breve intervalo a ser vivida, tão logo fosse trocada a bola por outra e a devida reposição pelo tiro de meta seria um recobrar de ânimo, um renascer das cinzas, um poente a abafar a tempestade – talvez seja este o significado da expressão popular “bola pra frente”, não vinda de um lançamento primoroso mas sim do desprezado e esquecido tiro de meta.
Talvez disso venha a razão do futebol ser tão apaixonante e cobiçado por gente de todo o mundo. No jogo, podemos encontrar relações diretas com nosso viver através da vida e morte: a derrota pelo gol sofrido e a alegria pelo tento marcado; a beleza da jogada articulada e a besteira da bola perdida; a pressão que não derrota através do chute que vai pela linha de fundo e o recomeçar pelo tiro de meta.
É preciso entender a força, o vigor e a esperança que um tiro de meta é capaz de mostrar. É preciso notar a perspectiva que um tiro de meta pode trazer a um jogo de bola, tão preciso quanto um recomeçar na vida depois de uma derrota circunstancial.
Num súbito, a imagem voltou à tela. O goleiro continuou solitário na TV, desferiu o chute e a bola foi para o meio de campo, com vários jovens a disputá-la numa outra imagem. O estádio continuava vazio e é possível que eu fosse um dos poucos telespectadores na reprise.
Depois do revés, o jogo recomeçou tal qual minha vida faz e fará após um desânimo breve, marcante porém passageiro. A vida continua, a partida também.