Me dá um Barão? (por Paulo-Roberto Andel)

Eu era garoto, tinha uns dez anos. Certamente minha vida foi melhor do que a de 90% das outras crianças, mas esteve longe de ser fácil.

Estávamos muito pobres, meus pais batalhavam demais.

Surgiu o Barão, em meio à inflação. Era um sonho. Eu quero um Barão. Você me empresta um Barão? A nota de 1.000 cruzeiros estrelada pelo Barão do Rio Branco.

Foi uma das cédulas mais queridas pela população, embora a maioria não tivesse nada.

O Barão me traz à tona um tempo distante, longe de ser fácil mas que me dá saudade. Não é saudosismo, mas saudade. É que essa coisa dos sete aos catorze anos passa com velocidade astronômica, a gente não aproveita direito e, quando vê, tudo voa longe.

No tempo do Barão, meu grande sonho era o lanche no Bob’s da Domingos Ferreira. Às vezes meu pai me levava lá. Minha mãe preferia o da Avenida Copacabana, ao lado do Externato Santo Antônio. Tudo se foi.

Ou ganhar um time de botão cristal Gulliver. O do Fluminense era lindo, verde vivo, com o escudinho envolto por um círculo amarelo. Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos; Pintinho, Cléber e Rubens Galaxe; Doval e Zezé. Faltou alguém.

Ou ganhar uma linda bola de couro com 32 gomos e me sentir um craque feito aqueles que apareciam no “Gol: o grande momento do futebol”, programa da Band apresentado por Alexandre Santos, só com gols, gols e gols maravilhosos. Tinha Ademir da Guia, Leivinha, Ailton Lira, Edu Bala, Sócrates, Palhinha, Serginho e também as feras do Rio: Luisinho, Tita, Nunes, Cláudio Adão, Roberto, Zico, Luisinho das Arábias.

Sonhar com os times de vidrilha da loja de brinquedos Dom Pixote, que ficava na Santa Clara, bem em frente às Massas Suprema com seus inigualáveis pasteizinhos.

Outro sonho de garoto: ir à Kayat Sports da Figueiredo Magalhães (que não sei ao certo se era do Seu Carlson Gracie ou não) e comprar o escudo tricolor bordado, lindo, mais um número 5 verde, do Edinho, daqueles de grudar na camisa passando ferro. Com o escudo e o número, era só comprar uma camiseta Hering branca e fazer a camisa de futebol mais bonita do mundo. O problema era que dinheiro não era nada fácil e conseguir um Barão…

A gente jogava bola na vila, quase todo dia. Na praia também, até o início da noite. Quando escurecia, não dava pra ver mais nada. Ver a praia de Copacabana hoje toda iluminada é engraçado: os mais jovens nem sabem que a iluminação só começou em fins dos anos 1980, talvez 1988 se não me engano.

Morria de medo de tirar uma nota vermelha. Podia perder a bolsa de estudos. Não podia errar.

Sempre que dava, via desenhos animados com minha mãe. Flintstones, Pepe Legal, Papa Léguas, Corrida Maluca. Até hoje vejo no YouTube. Só falta a mãe do lado.

[A dor de ser órfão é tão grande que não há como descrever, apenas sentir

Às vezes a gente jogava botão no Shopping dos Antiquários, debaixo da escada rolante. Só fiquei chateado um dia, quando os amigos não queriam que eu participasse do campeonato porque “ganhava tudo”. Eu podia até ganhar, mas minha grande alegria era jogar. Até hoje me sinto bem só de mexer nos botões em casa.

Quando tinha grana em casa, minha mãe fazia Strogonoff e bife à rolê. Nos tempos de maré baixa, carne moída com arroz, ou asinhas de frango. Pouco importava: com ela e meu pai em casa, eu acreditava até em felicidade plena.

@pauloandel

Futebol, futebol!

FUTEBOL (por Paulo-Roberto Andel)

Quando meu pai entrou no quarto com o álbum de figurinhas da Copa de 1970, no ano de 1973, eu tinha quatro anos de idade mas já gostava de futebol, mesmo sem nunca ter visto um jogo. E no ano seguinte, 1974, eu me lembro de estar sentado num degrau de concreto da arquibancada num jogo do Fluminense, quando meu pai me deu a mão e me puxou para ir embora. No corredor do Maracanã eu via vários torcedores grandes, todos muito maiores do que eu, caminhando para o mesmo lado, a caminho da rampa do lado da UERJ é de um obelisco que já não existe lá. E lembro do cheiro de cachorro quente das barracas, contrastando com o das laranjas, que eram vendidas em grandes plásticos no chão.

Em 1975, eu estava na casa de Dona Nininha e Seu Arlindo, que ficava na Estrada de Botafogo, quando meu pai chegou com uma caixa de lindos botões da marca Cracks da Pelota. Colar os escudinhos do Fluminense nos botões de plástico transparente, sem cor, foi uma responsabilidade: eu sabia que aquilo era muito sério.

Em poucos anos, eu ouvia um rádio Telefunken bem grandão para ouvir as narrações dos jogos. Meu pai me levou ao Maracanã lotado várias vezes, com 120 ou 130 mil pessoas, uma experiência pela qual ninguém passa imune. Eu lia O Dia, O Globo, Jornal do Brasil e Jornal dos Sports, até o Pasquim falava de futebol, a Revista Placar era maravilhosa. Jogava bola na rua, na vila ao lado do prédio onde morava, e também na praia de Copacabana, alternando as traves do Juventus e do Bairro Peixoto. Disputava campeonatos de botão com Augusto Arromba, Marcelo Batista, Luis Fernando Gomes Minas e o saudoso Fredão. Joguei também com meu amigo Leonardo Tigre Maia, que era meu colega de escola e, anos depois, de faculdade. Na casa do Fred, Luis e Floriano Romano eram figuras presentes, e também jogávamos nas casas deles.

Com 13 anos, eu já ia para o Maracanã sozinho toda semana, jogava botão sozinho, criava finais imaginárias em casa, disputava duplas e praia sempre que possível à noite, peladas na quadra da Lagoa e no Corpo de Bombeiros da Xavier da Silveira. Edinho era meu herói dos gramados. Eu respeitava adversários terríveis como Roberto Dinamite, Tita e Mendonça. Tentei fundar uma torcida organizada com Toninho e Ricardo, filho de Silério, que era amigo de meus pais e trabalhava num prédio da Rua Santa Clara – eles declinaram e deixei de ser o mais jovem presidente de torcida do país. Colecionava muitos botões que minha mãe me dava de presente, com todo o sacrifício financeiro – eu os tenho até hoje.

Quando fiz 15 anos, o Fluminense estava prestes a viver anos incríveis e inesquecíveis. Eu estava lá em todas. Deste então, se passaram quatro décadas. Respirei futebol o tempo todo, e continuo sendo o garoto que se encantava com os botões de plástico, as figurinhas da Copa de 1970, o grande anel do céu a ser observado por quem se deitava num degrau da geral do Maracanã. Por isso escrevi até aqui muitos livros sobre o assunto, afora os inéditos e inacabados: é que eu continuo procurando por todos os lados o cheiro do cachorro quente, das laranjas, os vendedores de Coca-Cola que mais pareciam astronautas da arquibancada – todos de branco, com capacete e o refrigerante às costas num tanque que mais parecia de oxigênio. Eu procuro a nuvem espessa de pó de arroz, o mar de bandeiras e também a oposição do outro lado. Eu procuro o velho obelisco, as caminhadas da Praça da Bandeira até o Maracanã, os sinais das estações de rádio que ecoavam por toda a arquibancada nos minutos finais de jogo, o pacotinho de batata frita Guri no bar fuleiro, a voz de Victorio Gutemberg saindo por altofalantes abafados e dando os resultados da loteria, os garotos pobres e descalços na bilheteria que choravam ao ganhar um ingresso do meu pai – ele também chorava, o lindo placar de lâmpadas que inunda meus sonhos, os passageiros do ônibus na volta de um clássico qualquer – risos, piadas, incorreções e abraços.

O Maracanã por muito tempo foi o lugar onde eu vi os ricos e os pobres se abraçando de verdade, como se fosse amizade e parceria, o único lugar. E que choravam juntos num insucesso.

Ainda procuro os garotos jogando botão debaixo da escada rolante do shopping dos antiquários, ou chutando bola na trave do Juventus com a praia deserta, ou ainda fazendo a de fora na Vila Tenreiro Aranha para se sentirem heróis entre traves imaginárias feitas com chinelos ou pedras.

Invariavelmente os vejo. Eu também estou lá.

@pauloandel

O Fla-Flu em três actos (da Redação)

 

Um curta metragem com direção de Henrique Castelo Branco e argumento de Paulo-Roberto Andel, realizado em 2013, levando um dos maiores clássicos do futebol mundial para o universo lúdico do jogo de botão, baseado em três grandes decisões entre Fluminense e Flamengo.