Tenho saudades do meu time. Ele não era apenas um time, mas um ambiente, uma atmosfera. Tanto fazia se a arquibancada estava lindamente lotada debaixo de uma nuvem continental de pó de arroz, tanto fazia: podia ser também uma quarta-feira vazia, chuvosa, com alguns bandeirões e a esperança numa vitória, mesmo que não significasse um título. Meu time era ter meu pai me puxando pela mão e me dando cachorro quente; era a sala das torcidas onde você espiava a dança das cores embalada pelo samba autêntico. Tenho saudades do meu time, todo de branco em campo, cheio de valentes jogadores negros, alimentando os sonhos dos garotos com o jogo de bola que, mesmo tão contaminado por ora, mantém seu fascínio através dos tempos. Eu tenho saudades de quando éramos quase todos anônimos e ninguém precisava se promover com polêmicas medíocres, porque o que realmente importava era o time – e não a patética vaidade do senhor dono da razão. Saudades de quando tudo era mais simples e humilde – o Maracanã era povo de verdade. Há quarenta anos, eu deitava sozinho no chão da geral e o céu me parecia uma grande tela circular: as nuvens lentamente navegando pelo céu, uma ou outra estrela sobressaindo e uma réstia de infinito que só revi anos depois nas telas circulares dos shows do Pink Floyd. Eu tenho saudades dos abraços sinceros na arquibancada, saudades dos maravilhosos vendedores de refrigerantes com seus capacetes, tanques de refresco nas costas, roupas brancas e visual de astronautas. Saudades das grandes bandeiras coloridas – vert, blanc, rouge! Saudades dos grandes placares eletrônicos com suas lâmpadas e o nosso escudo estampado nelas quando o time subia a escada do túnel à esquerda para entrar em campo – dezenas de garotinhos corriam loucamente pelo gramado, sonhando em estarem ali um dia como protagonistas. Está quase tudo morto pelo tempo, pois ele sempre vence, mas um refúgio permanente: o das minhas lembranças, o da saudade.
Passei pela Pedro Lessa a caminho de um evento por volta das cinco e meia da tarde. Começo de mês, perto do Dia das Mães – cadê a minha? -, pelo menos a Banca do André estava cheia de gente na happy hour, uma das poucas saudades dos meus tempos de escritório.
As pessoas bebendo em pé, em volta de mesinhas circulares cheias de long necks, rindo e conversando, salvando um pouco a imagem perturbadora que o Centro agora tem, de lugar abandonado e vazio. Do outro lado, o gourmetizado Amarelinho também tem sua turma. A partir daí, desolação. Não, na Santa Luzia tem um churrasquinho onde brota gente – e garotas bonitas paca.
Ainda a Pedro Lessa. Quem diria que ali existiu um império de música por anos, com CDs espetaculares e muita movimentação? As bancas de metal continuam lá, completamente vazias. Há três anos, acho, ou menos, comprei um Morphine importado, a banda de rock jazz “sujo”, underground, liderada pelo antológico Mark Sandman, que morreu em pleno palco se apresentando. Aquelas bancas metálicas vendiam sonhos: rock, jazz, bossa nova, sambas da antiga. Tudo passou. Ainda bem que tenho minha lojinha.
Depois da turma bebericando, uns dez metros adiante, havia um garotinho, provavelmente filho de alguém ali. Dez anos de idade. Baixinho, magriço, vestindo uma camisa 9 amarela em algodão, bem longe das marcas oficiais. Será que era uma camisa da Seleção? Não sei. Um garotinho de menos de um metro e meio, de bermuda e chinelos, com sua bola de futebol azul escura. Ele e mais ninguém. Dava uns passinhos, chutava a bola num muro da rua, ele voltava e repetia, depois tabelava. Tudo sozinho, ele e mais ninguém.
Eu me identifico porque apesar de já ter 56 anos de idade, nunca deixei de ser um garoto de dez no melhor que isso pode oferecer. Futebol, lanche, descanso e tudo, coisas que a gente vivencia quando criança da melhor maneira possível, e que carrega para sempre. Eu tinha dez anos em 1978 e o futebol me deixava louco: queria jogar na praia, na vila perto de casa, queria ouvir futebol na Rádio Globo, juntar figurinhas, jogar botão e esperava ansiosamente pela revista Placar toda semana – ela trazia escudinhos que você podia recortar para ornamentar seus botões.
O menino e sua bola azul. Ele toca para o fundo de um gol imaginário, faz da Pedro Lessa um Maracanã que ninguém vê. Comemora sozinho, não há torcida nem abraços, sou o único e silencioso espectador. Mesmo sozinho, ele se diverte. Um garoto com sua bola de futebol pode ser o mais feliz do mundo. É o que ele faz ali e me comove – é que eu também era daquele jeito dele quando eu tinha futuro. Lembro de tanta coisa em instantes: quem fui, o que sonhei e vivi. Chutei muita bola sozinho na vila, bem em frente ao colégio onde estudei, entre confusões, de 1977 a 1980.
[Pensei em oferecer meus serviços de ex-bom jogador ao garoto, mas desisti.
Sigo a caminho do evento. Estou prestes a atravessar a rua México. Olho para trás novamente e, enquanto a Banca do André dita a festa do pedaço, o futebol continua vencendo. É o menino solitário em seu mundo particular, tabelando e jogando. Sozinho, ele tem o Maracanã e o Morumbi. Não importa quem não está, mas sim o que virá. Continuo voltando 45 anos no tempo, quando eu sonhava em ter uma bola adidas Tango, até hoje a mais linda de todos. E sonhava em ter alguém para jogar dupla de praia domingo. E ficava horas e horas na praia. É por isso que entendo a nobreza daquele jovem magriço, porque mesmo com 70 quilos a mais, o futebol tem sido meu remédio, oxigênio do dia a dia, alívio contra as piores causas.
Sigo para o evento, o tempo não para. O garotinho, meu amigo desconhecido, insiste nas tabelas com o muro. Ele joga por ele e por mim, sem saber. O futebol insiste, e isso enche meu coração de esperança.
Olha, eu gosto muito de futebol, muito mesmo. Gosto de jogar e de ver. Ir ao Maracanã é uma coisa muito boa, e está mais fácil porque meus pais agora me deixam vir sozinho, inclusive à noite. Só o passeio já valeria a pena: eu pego o 434 na Figueiredo Magalhães e faço uma viagem pelo Rio. É um percurso muito bonito que serve de roteiro turístico pela zona sul do Rio, o Centro e, logo depois, Praça da Bandeira e São Cristóvão até chegar ao maior estádio do mundo.
Praticamente todo o meu dinheiro eu gasto com futebol. Também não tenho muito, é a mesada que meu pai me dá. E também vou ao cinema. Só que o futebol é sagrado. Para poder ir a mais jogos, eu vou de geral que é bem mais barato, quase o preço da passagem de ônibus. Se estiver com tempo de chuva, aí a geral é certa, porque você aguenta o primeiro tempo e, no intervalo, o pessoal da Suderj abre uma escada que vai até a arquibancada.
Eu sou Fluminense desde que nasci, gosto demais do Fluzão, mas venho ver jogos de outros times. Já assisti Vasco, Botafogo, Flamengo, America e Bangu.
Não sei por que, mas uma coisa que eu gosto muito é de chegar ao Maracanã ainda vazio, bem silencioso. Esse silêncio me faz muito bem, é como se acalmasse tudo. Gosto de ver o campo, bem verdinho, mesmo quando tem alguns defeitos. Ah, e eu gosto também de me deitar na geral vazia e ficar olhando o céu. A cobertura de concreto do Maracanã faz o desenho de um círculo, o céu parece um disco voador, é muito bonito. Claro que o estádio cheio é maravilhoso também, mas eu gosto dele deserto. É um jeito diferente de ver.
Outra coisa ótima da geral: a gente pode jogar bola antes do jogo. Outro dia teve Vasco e Botafogo, então viemos com uns amigos da escola. A gente marcou o golzinho e ficou três para cada lado. Tinha o Luiz Cláudio, que é Flamengo, o Bolaman também. O Chico, vascaíno. Não me lembro se tínhamos um botafoguense na trupe. Nossa bola oficial, a Dente de Leite. Acho que foi num sábado à tarde.
Foi uma ótima ideia fazerem o Torneio dos Campeões. Vários jogos excelentes, tem Maracanã quase todo dia. Logo mais eu vou de novo pra ver Vasco e São Paulo. Sempre alguém me pergunta por que eu vou numa partida que não tem o meu time. É que futebol é bom demais. Só de subir a rampa e passar pelo tunelzinho da arquibancada, já é uma emoção enorme.
O Maracanã é grande, é gigante. Espero poder acompanhar o futebol pelo resto da vida. Toda vez que vou ao jogo, é como se eu continuasse um sonho que nunca termina. Há pouco, o Fluminense quase foi campeão brasileiro, mas deixamos escapar a vaga pro Grêmio de virada. Foi um jogão. Perdemos, paciência. A coisa não está fácil para o Flu, mas espero que em breve a gente tenha um time que possa ser campeão. Eu tenho fé que isso vai acontecer.
Para quem vai ao Maracanã há muito tempo, é certo que muita coisa mudou. O velho estádio setorizado virou uma arena, mas também segmentada e pior, gradeada. Não há vestígios da velha geral, nem do glorioso setor de cadeiras azuis, que já tiveram a cor laranja também.
Sábado passado, para aliviar um pouco das dores da vida, fui assistir Fluminense e Palmeiras. Comprei o ingresso em cima da hora no único local disponível, Leste Superior, que antigamente chamávamos de meio de campo e, mais tarde, de cadeiras brancas. Resolvi fazer um caminho diferente, de muitos anos atrás: saltei no metrô São Cristóvão, indo a pé pelo Cefet e rememorando caminhadas fascinantes com meu pai rumo ao palácio do futebol. Mais policiado do que eu esperava, com pequenos grupos de tricolores rumando para o Maraca, eu fui junto.
Uma saudade: parar bem na esquina e lembrar da antiga bilheteria, onde comprávamos nossos ingressos em 1978 e 1979, também onde garotinhos pediam moedas. Várias vezes meu pai comprou três, quatro ou cinco ingressos e deu para eles, que saíam enlouquecidos para entrar no Maior do Mundo e viver duas horas de sonho. Saudade que ia se repetir mais duas vezes: primeiro, ao lembrar que na entrada da Leste vi Alberto Lazzaroni pela última vez, há uns dois meses, e ele queria doar um ingresso sobressalente. Nos anos 1970 mil garotinhos viriam correndo, mas não conseguimos ninguém. E Alberto foi embora muito antes do justo e razoável. Segundo, bem perto do encontro de Alberto, fica um degrau da escadinha onde eu sentava com meu pai, às vezes uma hora antes dos portões abrirem – ele adorava chegar cedo. Tempos em que o Maracanã era cercado por bancos de praça e vendedores de laranja, a fruta mesmo, mais cara quando descascada.
Ir de Leste Superior, assim como na Oeste, dá direito a uma experiência maravilhosa: subir a rampa original do Maracanã, a imortal, que serve aos torcedores há 73 anos. Dela, eu já aproveitei quase 50. Subo lentamente com meu chinelinho velho e sinto vontade de chorar muitas vezes, porque todos aqueles anos incríveis vêm à tona: a emoção de rever a infância, a sensação de ter meu pai ao lado, espiar às torcidas organizadas vendendo seus produtos nas pilastras, aqueles garotinhos da bilheteria subindo e rindo tão felizes mesmo com roupas rasgadas ou descalços, os senhores carregando suas almofadinhas para aliviar o calor na arquibancada. Subidas com esperança em vitórias maravilhosas que nem sempre vieram, a seguir descidas de cabeça quente ou repletas de vitória.
Dois minutos de subida que valem uma vida. Agora estou sozinho, ninguém me acompanha e o novo Maracanã tem uma pequena rampa anexa para continuar o percurso até a entrada do setor. Para quem viveu muito o Maracanã, um jogo não é só um jogo: há toda uma carga do passado maravilhoso. Então compro meu velho cachorro quente, um mate, vou para a arquibancada e repito um ritual de muitos e muitos anos: olhar para o novo e rever os anos inesquecíveis de minha vida.
O jogo é duro, meu amigo Edgard não pôde vir, o Luciano chegou atrasado e vimos o Fluminense vencer bem. Teve gol de pênalti e gol bonito. Ver o Marcelo tocando a bola e driblando relembra momentos espetaculares do nosso futebol, que eram muito comuns. Tudo é diferente, sem dúvidas, mas tem sabor. Difícil foi ver o Alberto no obituário do telão, é estranho demais porque ele era cheio de vida e, num estalar de dedos, tudo mudou.
Fim de jogo, a torcida do Fluzão sai feliz e confiante, então descemos a rampa e me sinto em berço esplêndido como em nenhum outro lugar. Há mais de 70 anos, quanta gente desceu ali? Quantas vezes houve alegria ou tristeza. Quantas vezes não saímos inebriados com um golaço ou uma jogada inesquecível? Fui feliz ali muitas vezes, mesmo nos piores momentos.
Logo depois do portão, me despeço do Luciano e, à esquerda, está o nosso degrauzinho, meu e do meu pai. É a lembrança, é o que me resta. Tal como na ida, faço a volta diferente e vou a pé para o metrô de São Cristóvão, depois salto no Catete, peço um lanche no Big Néctar e lamento muito que meu amigo Eric não esteja lá para me acompanhar num sanduíche. Ainda vou pegar um táxi para casa. Na terça que vem eu vou de Norte, então não vai ter a emoção da grande rampa, mas espero que se repita em muito breve.
Há quem diga que o futebol é bobagem. Santa insensibilidade: se não fosse o futebol, o mundo seria muito pior porque, para centenas de milhões de pessoas, ele é a única chance de alegria em meio a um monte de ódio, opressão e covardia. Hoje à tarde, conversando com Raul, lembramos que o velho Maracanã era o único espaço de real convivência democrática da cidade entre ricos e pobres, abraçados nos gols e chorosos nas derrotas. Em muito menor escala, eu só consegui viver o mesmo no grupo de escoteiros: todos acampávamos com ou sem dinheiro, fazíamos vaquinha, apertávamos a comida, o ônibus mais barato. No grupo éramos uns setenta; no Maracanã, cem mil. Quantas vezes o futebol me salvou? Não sei dizer. Quando meu pai chegava derrotado e violento por causa da bebida, eu corria para o 434, ia para a geral e chorava vendo um jogo. Noutras vezes, eu ficava no corredor da arquibancada olhando a UERJ e sonhando em estudar lá. Noutras vezes eu ia porque era o único lugar em que, tão solitário, eu não me sentia sozinho. Foi assim muitas vezes. Sem o futebol, a depressão teria me vencido, eu teria executado o suicídio que iniciei e teria sido um desperdício, porque escrevi muitas coisas legais a seguir, o que eu não faria morto por motivos óbvios. O futebol me deu a ilusão de um monte de amigos juntos, caso da arquibancada; me deu sonhos em jogos e lances inesquecíveis; preparou meu espírito para saber encarar as derrotas. O futebol me deu muitos colegas, com quem interagi e trabalhei muitas vezes. Por exemplo, nesse domingo há 28 anos o meu time ganhou um dos maiores jogos de todos os tempos, com um gol de barriga. Naquele ano quase tudo deu errado pra mim, mas o campeonato valeu muito a pena. Muitos anos depois, foi o futebol que permitiu minha estreia em livro e, por gratidão, escrevi um monte de livros sobre o tema, vários ainda inéditos. Por causa do futebol vivi admirações, paixões e conheci minha esposa. Também conheci pessoas do Brasil inteiro, com quem converso sempre que posso – algumas colaboram com o meu site. O futebol só não me ofereceu mais abraços do que minha mãe. Você conhece ou segue um artista, acaba gostando mais dele quando é um entusiasta do futebol. Ele me faz esquecer as dores no corpo, a minha tragédia pessoal, a melancolia cotidiana. Por uma hora e meia, mesmo que o jogo não seja bom eu tenho meu pequenino momento de felicidade. Tanto faz se é uma partida importante ou esdrúxula – o jogo começa, eu volto a ter dez anos de idade e meu olhar persegue a bolinha na tela da televisão. Ah, se não fosse o futebol, como eu teria conversado com a Bibi Ferreira, o Gilberto Gil e a Letícia Spiller? E a Maria Bethânia? E o Italo Rossi? E como eu ia suportar o mundo agora, que me humilha todo dia enquanto sinto dores pelo corpo e choro por tanta gente humilhada feito eu? É domingo à noite, tudo parece perdido, tenho vontade de desistir mas penso na terça-feira, tudo pode ser diferente e surgir pelo menos uma luzinha no fim do túnel. Pode ser que eu não tenha um único amigo, pode ser que eu não consiga vender e está tudo perdido, mas a terça-feira me serve de esperança. Vou pensar no jogo, vou conversar com colegas para chegar logo o horário da partida. Agora é uma noite melancólica como todas de domingo, onde esperamos ótimas semanas que nunca, mas nunca chegam – ao menos para mim -, só que eu carrego comigo o futebol, a minha esmolinha, os meus botões que minha mãe comprou com tanto sacrifício, as histórias que vi e escrevi, as histórias que ainda preciso contar quando era garoto e, na Copacabana de orla escura, chutava a bola na areia com os colegas mesmo sem vê-la direito, nem o goleiro e o gol – assim como só nos resta viver, nos campos da praia só nos restava jogar, pouco importando se a bola iria para a direção correta, ou se um gomo da bola estivesse soltando. Aqui falo de quarenta ou quarenta e cinco anos atrás, que foram há um susto porque tudo é brevidade, mas a bola na praia, na vila, no playground do Gordinho e mesmo no Maracanã – meu pai me levou para ver não apenas o Fluminense, mas o America, o Bangu e até o Campo Grande, todos contra o Flamengo – eram tudo uma coisa só: um pequeno suspiro de felicidade.
Saí do trabalho, passei pelas ruas tristes que só tinham algum alento por que os flamengos estão nas calçadas – eles já comemoram! -, e resolvi passar na pequena papelaria da rua dos Inválidos para comprar uma caneta Bic.
Volta e meia faço isso. Minhas canetas somem. E também porque papelaria é um dos melhores lugares do mundo: olhe para a cartolina, a cola e logo você estará de volta ao melhor de todos os mundos – a infância.
A Bic traz de volta meu pai, que tinha uma letra bem bonita, trabalhada, e estava sempre anotando coisas, de lista de compras a tarefas do dia. Traz a mim mesmo, sonhando em passar no vestibular e estudar na UERJ – fui pra lá por amor, eu a queria desde garoto. Às vezes no corredor do estádio, olhava para o pavilhão e dizia “Um dia eu vou estudar ali”. Acabei indo.
Há 44 anos, eu comprava uma cartolina para desenhar meu estádio de futebol de botão. Ainda não tinha um Estrelão. Meu time do Fluminense tinha Wendell ou Renato, Miranda, Edinho, Rubens Galaxe, Doval, Rivellino, Paulo Emílio, Sebastião Araújo. Botões Gulliver lindos, verdes, com o escudinho do Flu pintado em fundo amarelo.
Daqui a pouco vai ter decisão no Maracanã, o mundo todo vai olhar para lá. Em condições normais eu estaria na velha arquibancada de concreto, mas quem comanda o meu time não deixou, se é que me entendem. Vida que segue.
Saio da papelaria, penso na escola que foi derrubada, nos professores todos mortos, nos colegas que nunca mais vi. Há uma longa caminhada daqueles dias até aqui. Muito longa, tão longa que o Maracanã teria 150 mil pessoas mas vai se consolar com 60 mil – e o povão, aquele povão que eu encarei de frente em Fla-Flus inesquecíveis, agora se esconde em casa ou espia a TV em biroscas para acompanhar seu time. É tudo muito diferente dos tempos dos botões verdes.
Nessa terra tão triste e devastada, que convida ao suicídio, o futebol é importante demais. Quanta gente tem no futebol sua única distração e alegria? Pode ser TV ou rádio, pode ser pelo celular, todo mundo está acompanhando o jogo.
Agora é jantar uma macarronada, deixar de lado o desespero das eleições, não pensar nas dívidas asfixiantes, descansar um pouco e ver o jogo. Claro. Adoro futebol e sempre tenho lado. Não confio em gente que não tem lado em futebol, que só não é pior do que o Zé Ovo dizendo “Não acompanho nada que não tenha o meu time” – não passa num detector de mentiras, coitado.
Nem sei se está tendo confusão no Maracanã agora, e é possível que sim, mas do nada me bateu saudade daquele estádio com cento e tantas mil pessoas, onde eu era um garotinho encantado com as bandeiras, o pó de arroz, o placar de maravilhosas lâmpadas e um monte de craques em campo. Aquilo era extremamente mágico e, se escrevi milhares de páginas sobre futebol, foi por causa da infância inesquecível.
Vou jantar. Que seja uma rara noite de paz nessa terra. Que seja uma noite de diversão para muita gente, sem ódio, sem a cólera doentia que alguns insistem em mostrar nessas ocasiões.
O anfitrião tem a faca, o queijo e o resto na mão para ser campeão no Maracanã – e, por isso mesmo, como ensina a história dos visitantes no campo imortal, tá bem arriscado da Fiel urrar num delírio. Eu vou de 13! Secar é uma das coisas mais divertidas do futebol.
Eu trabalho num sebo. Por isso, regularmente acabo recebendo doações de livros e discos. Na semana passada, quem apareceu foi meu amigo Leo, precisando se desfazer de um material expressivo: centenas de CDs. Passamos praticamente a década de 1980 juntos: fomos escoteiros, jogamos muita bola e botão por aí.
Ele veio à loja, deixou o material e então fomos para a Leiteria Mineira, uma das relíquias do Centro do Rio. Ficamos lá por cerca de duas horas, daí nos despedimos, ele foi para o Metrô Carioca, eu fui para a Praça Tiradentes e só o futuro dirá quando nos veremos novamente. São milhares e milhares de quilômetros de distância entre as nossas casas.
Voltei para o sebo e comecei a mexer num pacotinho que veio junto com os CDs. Num saco plástico transparente, botões, escudinhos de papel do Grêmio e uma trave de plástico. Tudo coisa dos anos 1980, perto dos 40 anos de vida. Ah, o tempo que passa tão rápido.
Saquei um botão do pacote. Era do meu Fluminense, igualzinho a um time que tive e o tempo levou – logo que pude, colecionei botões de vidrilha e galalite. Voltando ao botão: de acrílico verde lindo e o escudo tricolor envolto em fundo circular amarelo. Lindo. Devia ser coisa de 1978: eu ainda não tinha um Estrelão para jogar, sequer um Xalingão, então fazia meu campo com uma cartolina verde, fazendo as linhas pacientemente com caneta e régua. Havia a Copa do Mundo, papel picado nas ruas, a revista em quadrinhos “Dico, o artilheiro”, o começo do Globo Esporte, as figurinhas do Futebol Cards, os botões em pacotinhos na banca de jornal e muito mais coisas para os garotos que, como eu, começavam a ficar apaixonados pelo melhor jogo de bola do mundo.
O botão do Fluminense. Tem um número 4 preto bem em cima do escudo e um 22 escrito à caneta. O que será que aconteceu com ele? Era titular e virou reserva? Não sei. A camisa 22 nem existia, exceto para as seleções, mas a 4 teve muitos candidatos. Edinho jogava sempre com a 5, mas usou a 2 em sua segunda passagem pelo clube. E a defesa? Wendell, Miranda, Tadeu, Edinho e Carlinhos. Renato, Miranda, Moisés, Edinho e Rubens. Logo depois teve Ademílton. Pelo caminho ficaram Edval e Dário. Miranda era o Trésor brasileiro, referência de Marius Trésor, cracaço da seleção francesa. Ah, o Edevaldo.
Descobrir quem era o botão faz sentido. Os botões têm vida, alma e personalidade próprias. Se um botão foi batizado com um nome, não se pode contrariá-lo chamando-o por outro. E é pra sempre, porque os botões são imortais.
Sendo o camisa 4 do Fluminense em fins dos anos 1970, o botão teve muito trabalho. Imagine marcar Adílio, Roberto, Mendonça, Tita, Paulo Cezar, Búfalo Gil e outras feras no Estrelão lotado? Não era nada fácil. Naquele pequeno pedaço de belo acrílico verde há uma história, uma vivência e uma atualidade porque o tempo do futebol é diferente dos outros: possui a magia da eternidade. Com ele, futebol, semanalmente temos dez anos de idade para sempre; falamos de coisas de 30 ou 40 anos como se fossem noutro dia e, quando vemos os ídolos hoje setentões, eles nunca têm mais do que 30 ou 25 anos de idade, porque essa é a imagem que ficou para sempre. A imagem de um jogo fica eternamente nos olhos de um menino.
Continuo a apreciar o botão. Tiro uma foto. Ao fundo está o Teatro João Caetano. Então entro no Maracanã lotado. Ele deve ser o Miranda, de uniforme todo branco, encarando Cláudio Adão de rubro-negro ou Catinha de vascaíno. Eu estava na quarta série, sonhava com o Estrelão e com um futuro melhor. Quarenta anos passam rápido, rápido demais, mas só entende quem é do ramo: o futebol é um eterno presente em que vivemos. Está tudo bem guardado na memória.
A primeira cena que me lembro de estar no Maracanã foi em 1974. Era o fim do jogo, a noite e olhei fixamente para o antigo placar em 0 a 0. Não lembro do jogo, mas muito provavelmente era o meu Fluminense contra alguém.
Pelas décadas seguintes, ele foi minha casa, meu pedaço de felicidade, minha sensação de cidadania. Eu acreditava num Brasil feito o Maracanã, onde o pobre e o rico podiam se abraçar para comemorar um golaço.
Vi alguns de seus maiores jogos, na verdade muitos. Vários com bem mais do que 100 mil pessoas. O Maracanã já foi o lugar onde o povo carioca se encontrava.
É claro que quando você vai a centenas de jogos, verá seu time ganhar e perder muito. O futebol é assim. Eu ainda via os times dos outros: quando descobri que a geral era baratinha, tripliquei o número de jogos no estádio. America e Bangu? Eu estava lá.
Depois de 2010, tudo mudou. Colocaram um outro estádio no lugar do Maracanã, gourmet, para selfies e deslumbrados em busca de fama. Só que você não frequenta uma casa por quarenta anos à toa, e a força daquele lugar é tão grande que nem os inimigos do chamado “futebol moderno” resistem.
Nos últimos tempos, só as ornamentações cabem na arquibancada. Vivemos tempos de guerra com a pandemia. O Maracanã virou uma sessão de TV, quando ela transmite. Mas ainda há o que procurar em meio aos escombros retrofitados da história.
Como se fosse num sebo, procuramos velhos craques, histórias inesquecíveis, bordões de rádio, vozes impressionantes e bandeiras, fogos, pó de arroz, papel higiênico, sinalizadores. Procuramos jogos de meio século que parecem ter sido ontem. Procuramos heróis permanentes e anônimos, restinhos de glória, apoteoses da pequenina felicidade.
O Maracanã das preliminares, da rodada dupla, do eco nos alto-falantes com Victorio Gutemberg dizendo “SU-DERJ IN-FORMA”. Dos gols apoteóticos, dos títulos imortais, do drama e da morte, mas também da vida.
Tomara que um dia o Maracanã volte de verdade. Para muitos de nós, ricos ou pobres, brancos ou pretos, gordos os magros, velhos e jovens, ele foi o grande rio que passou em nossas vidas. O Rio.
São pouco mais de oito horas da manhã, num silêncio enorme abraçado à luz ensolarada da Cruz Vermelha. Estamos no último domingo de agosto. Por alguma razão o futebol cutuca meu ombro antes que eu levante para lavar o rosto, então volto no tempo e desembarco num outro domingo qualquer de agosto, podendo ser em 1979, 1980 ou 1981.
Era batata: uma rotina maravilhosa. Logo ao acordar, lá estava o rádio ligado no programa do Waldir Vieira – a vinheta tinha o assobio clássico da Rádio Globo – até que, em algum momento, anunciavam a cobertura da rodada do futebol a partir de meio-dia. E aí eu descia para fazer as compras matinais, sonhando em ir ao jogo no Maracanã, especialmente do meu Fluminense – se não desse, seria bom ir a outro também, quando o Flu jogava longe ou fora da cidade. Pão, ovos, queijo, presunto, Jornal dos Sports, O Globo, O Dia, Jornal do Brasil.
Terminado o Waldir, meu pai ligava a TV no Conversa de Arquibancada na Bandeirantes (hoje Band), o programa onde representantes das torcidas organizadas dos clubes cariocas debatiam o futebol. Era um barato. Personagens como Niltinho (Flamengo), Russão (Botafogo), Amâncio Cezar (Vasco, que viria a ser um de meus melhores professores na UERJ) e Antonio Gonzalez (do Fluminense, meu ídolo e que se tornaria meu grande amigo no futuro), comandados por Hamilton Bastos e posteriormente por Dênis Miranda. E depois de uma hora ouvindo os torcedores falarem do Maracanã e do futebol, eu só queria era ouvir a senha mágica, ir para o estádio e ver aquele mar de gente se espremendo com radinhos de pilha nos ouvido, uma experiência sensorial indescritível.
Mas que senha mágica? “Paulo, vá lá embaixo comprar lasanha na Trattoria Torna (da rua Anita Garibaldi)”. Não falhava nunca. Acho que o ritual do Maracanã para meu pai exigia a lasanha de domingo. Comprado o almoço e feita a deliciosa refeição, era só esperar o ônibus na porta do Shopping dos Antiquários em Copacabana e partir para a glória. Saíamos bem cedo, perto de uma da tarde, e geralmente chegávamos com os portões do Maracanã ainda fechados, o que aumentava ainda mais o clima do jogo.
Para nós, o 435 era bem mais rápido e ainda passava na porta do Fluminense, o que era sempre um bom presságio, mas meu pai geralmente pegava o 434, linha Grajaú-Leblon, eleito o ônibus de percurso mais charmoso do Rio, atravessando toda a zona sul, o centro da cidade, passando pelo Maracanã e depois por Vila Isabel. Desconfio de que ele gostasse do percurso e também quisesse me colocar para saborear a cidade. Uma hora depois, estávamos no Maraca. Tinha vendedores de laranjas – a descascada era mais cara -, de almofadinhas para assento – em dias de calor a arquibancada era quente! – de bandeirinhas de mão, de cachorro quente e, acreditem, o estádio dono do mundo tinha bancos de praça em suas cercanias. Em pouco tempo, o vazio era tomado por um mundaréu de gente.
A experiência de subir a rampa do Bellini ou da UERJ de mãos dadas com o pai era algo indescritível. E ainda passar pelas salas das torcidas, com a festa sendo preparada. O lance final era embarcar nos estreitíssimos e escuros túneis que davam acesso à arquibancada, como se você fosse teletransportado para outra dimensão, até que vinha a luz e qualquer garoto ia à Lua ao se deparar com aquele campo gigantesco, aquele monte de gente cantando, a preliminar rolando – ou prestes a acontecer -, os vendedores de Coca-Cola vestido feito astronautas, todos de branco, com capacete e o tanque de refresco nas costas como se fosse um respirador.
Às quinze para as cinco terminava o jogo dos juvenis. As torcidas começavam a arrumar suas bandeiras para desfilar na arquibancada. Papel picado, papel higiênico, pó de arroz, fumaça. Quando começava a ter algum burburinho na entrada dos vestiários, um de cada lado, subterrâneos, aí as torcidas explodiam de alegria. E quem torcia para o Fluminense sonhava com Edinho, Zezé, Deley, Mário, Pintinho, Gilberto, mas por tabela via Mendonça, Helinho, Marcelo, Carpeggiani, Adílio, Zico, Júnior, Roberto Dinamite, Paulo Cezar Caju, Orlando Lelé, Marco Antônio, Edu, Luisinho Tombo, Alex, Mirandinha, Moisés e Luizão lutando contra Wendell, Renato, Raul, Cantarele, Mazzaropi, Zé Carlos, Tobias, País, Ernani.
Às sete da noite, o jogo acabava. Ganhando, perdendo ou tendo apenas assistido, lá estava meu pai e sua mão a me puxar, enquanto eu já pensava na resenha da TVE, na reprise do jogo à meia-noite de domingo, ao próximo jogo que teria que ser pelo apaixonante radinho de pilha e também pelo próximo no Maracanã. O próximo, o próximo, o próximo jogo, numa sucessão infinita que talvez atravesse a morte, honrando as palavras do mestre Nelson Rodrigues.
Agora são nove da manhã do último domingo de agosto. Não estamos mais em 1979 ou 1980, mas em 2020. O rádio está desligado. A banca não vende mais jornais. A senha do pai emudeceu e o clássico do Maracanã foi ontem, com a bela vitória do Fluminense sobre o Vasco. Não há como ir ao jogo logo mais, seja de que time for, e o jeito é navegar pela televisão. E o próprio estádio é totalmente diferente do que já foi um dia. Mas quem disse que aquele desejo infinito de pegar o 434 em Copacabana e passear pela cidade por uma hora até chegar ao Maracanã passou? Não passa, não passará.
Quem subiu as rampas do Bellini ou da UERJ, mergulhou no micro túnel da arquibancada ou desfilou pela grande volta olímpica da geral, nunca mais deixou de voltar. É uma busca infinita pelo futebol, pela paixão, pelo Rio de Janeiro, feito a dos garimpeiros que não largam seu ofício à procura de uma pepita de ouro, aquela que explica a nossa paixão pelo jogo de bola. É o Maracanã, amigos. Que venha o próximo jogo!
O estádio imortal celebra 70 anos. Na pequena importância que me cabe, comecei em 1974, aderi de vez em 1978 e fui direto até 2010. Três anos de obras, então 2013 até a pré-pandemia. Trinta e oito de saldo para mim, sessenta e sete para o Maraca. Fiquei com mais da metade.
O meu Maracanã é o de garoto. É o que eu tenho perseguido desde então. O dos jogos com mais de cem mil pessoas nos anos 1970/80, também de jogos para duas mil, mil ou até seiscentas pessoas. O da geral, onde jogávamos golzinho com bola dente de leite – e o guarda pegava a bola pra gente quando ela caía no fosso, acreditem. O dos craques consagrados e das partidas corriqueiras. Foi a casa da minha juventude, entre bandeiras e pó de arroz, mas também batendo ponto em jogos dos outros times.
Houve um tempo em que eu via muitas partidas do America. Sempre encontrava na geral com um rapaz, cujo nome não me lembro. Sei que era mais velho, já tinha o bigodinho de adolescente a caminho do quartel. Ele vibrava quando eu chegava, nem sabia que eu não era americano. Sei que morava em Santo Cristo. Que fim levou?
Para mim, sempre foi um lugar onde encontrei paz, mesmo que nem sempre tudo estivesse calmo. Uma das minhas diversões era deitar no chão da geral, colocar o chinelo descansando a nuca e olhar para o céu, para o desenho circular da marquise, como se fosse um grande disco voador com nuvens. Muitos anos depois é que fui saber dos suicídios no estádio na final de 1950.
Tempos depois, uma de minhas grandes alegrias foi ser aprovado para estudar na UERJ. Juntei duas paixões vizinhas por muitos anos.
Mais do que em qualquer outro lugar, ali eu vi a catarse: o politicamente incorreto imediatamente cedia vez a abraços. Em que outro lugar do Brasil ricos e pobres, brancos e negros, elitistas e suburbanos se abraçaram tanto? Nenhum. Só lá.
Vi gente rindo, chorando muito, trabalhando, sofrendo, comemorando. Foi no Maracanã que busquei forças para superar a perda da minha família. E dele tirei bons capítulos para alguns livros.
Depois de 2013, tudo ficou diferente e para o meu gosto, impopular demais. O problema é que estou velho para largá-lo, então insisto. Às vezes me perco olhando formas e gentes que já não existem, mas o futebol tem seu tempo próprio e, portanto, um grande gol ou uma jogada fantástica podem ter trinta ou quarenta anos que parecem como algo da semana passada.
Se tivesse a chance de voltar no tempo, talvez eu mexesse em muitas coisas na minha vida, exceto a minha relação com o Maracanã. Com ele seria tudo do mesmo jeito, sem me importar com resultados. É que voltar a andar de mãos dadas com meu pai faz falta, ou vê-lo comprar ingressos para os molequinhos que choravam de alegria – e me dava vontade de chorar porque eu também era um molequinho, mas sabia que eles não tinham um pai para levá-los ao jogo, nem dinheiro, nem nada.
Tudo mudou, mas toda vez que eu passo pela Radial Oeste ou pelo Bellini, fico encantado com a grandeza daquele lugar que mais pareceu a minha casa do que qualquer outro. Ali chorei, sorri, tive família, convivi com amigos, vi obras de arte, fui sozinho também. O Maracanã me deu um dia orgulho de ser brasileiro.
Nos últimos tempos, fico espiando os senhores com radinhos de pilha. Penso em onde eles estavam quando eu era uma criança, e os sinais das estações de rádio ecoavam por toda a arquibancada. Uma experiência sensorial fascinante.
Meu Maracanã é o dos pobres, dos humildes, da banca de laranja vendida na rua, do trem cheio ou do 434 lotado dali até Copacabana. De Jorge Curi com sua narração de trovão, depois do Garotinho, genial, que já me atendeu tão bem em programas de TV. De baratinha Guri e cachorro quente Geneal. De chegar num domingo de clássico às três da tarde e ficar espremido até às sete.
Gosto é gosto, é de cada um, mas queria dizer algumas coisas de quem vem dentro disso há mais de 40 anos.
Se não sabe o que é futebol, recomenda-se silêncio para não falar besteira.
Parando pra pensar: nesse momento em que há uma tragédia mundial, não bastasse todo o mar de problemas e tristezas, o futebol está fazendo muita falta.
O Brasil não é uma república federativa com 100 milhões de TVs Smart. Não. Aqui no Rio mesmo tem pedaços da cidade que sequer têm luz. E gente humilde demais que tem como única distração o jogo de futebol no radinho de pilha, ou a resenha.
Pelada de rua, golzinho, de fora, tudo está proibido. Muitos garotos pobres, longe demais de pais com ótimos salários, às vezes só sabem o que é brincar quando há uma bola, mesmo que esteja esgarçada, com a câmara de ar em carne viva.
Já ouviu falar na geral do Maracanã? Ela foi assassinada há quinze anos, mas por outros cinquenta e cinco era o único lugar desta cidade maravilhosa onde brancos e negros se abraçavam de verdade toda quarta-feira e domingo – e quando tinham que sair na porrada, era de igual pra igual.
Durante muito tempo, num país comprovadamente escravagista (“E daí?”, né), a negritude tinha duas chances de ser respeitada como devido: na música popular ou no gramado de futebol. O racismo esteve e está em todos os lugares, mas o futebol ajudou de vários modos a lutar contra ele.
Quer saber de futebol? Pergunte para alguém que já ama o jogo há muito tempo sobre como tudo começou. Vai dar um livro inteiro.
Se é domingo na arquibancada, sábado no campo da praia ou feriado na grama ao lado do churrasco, não importa. Pode ser na mesa de botão, no game do computador e até no velho Telejogo, o futebol está lá ganhando os corações. E o Pelebol? E os craques no fundo das tampinhas de garrafa?
Os cinquentões de hoje foram crianças vendo e ouvindo Rivellino, Ademir da Guia, Dicá, Edu. Seus pais vibraram com Castilho, Barbosa, Evaristo de Macedo. Os avós sonharam com Domingos da Guia, Fausto, Heleno, Batatais, Lelé. As crianças de agora podem saber de todos eles.
Sabe quem foi Roberto Gomes Pedrosa? Já ouviu falar de Preguinho? E Belford Duarte?
E o Fla-Flu da Lagoa em 1941, hein? E a Taça Salutaris de 1927?
Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. País, Uchoa, Alex, Geraldo e Álvaro. Wendell, Miranda, Tadeu, Edinho e Rubens. Lico, Nunes e Tita. Jorginho, César e Baroninho. Todo de preto, o Borrachinha. De camisa branca, Leão.
Não despreze quem ama futebol. Tem muito mais coisas em jogo do que somente uma partida. Tem crônica, cinema, teatro, romance. Tem beleza até nos finais infelizes – pergunte aos maníacos que andam vendo reprises de derrotas de seus times há 30 anos!
Um garotinho com um cachorro quente na mão, um copo de Coca-Cola na outra, o popô no velho concreto quente e com seus pequeninos olhos espiando Edinho, todo de branco, arrancando da defesa para o ataque até fazer um golaço, comemorar feito um louco e, no final do jogo, lamentar a péssima vitória do Fluminense por 4 a 0 – poderia ter sido melhor. Ao lado, o pai sorri.
“Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval”. – Eduardo Galeano.
Quando meu pai entrou no quarto com o álbum de figurinhas da Copa de 1970, no ano de 1973, eu tinha quatro anos de idade mas já gostava de futebol, mesmo sem nunca ter visto um jogo. E no ano seguinte, 1974, eu me lembro de estar sentado num degrau de concreto da arquibancada num jogo do Fluminense, quando meu pai me deu a mão e me puxou para ir embora. No corredor do Maracanã eu via vários torcedores grandes, todos muito maiores do que eu, caminhando para o mesmo lado, a caminho da rampa do lado da UERJ é de um obelisco que já não existe lá. E lembro do cheiro de cachorro quente das barracas, contrastando com o das laranjas, que eram vendidas em grandes plásticos no chão.
Em 1975, eu estava na casa de Dona Nininha e Seu Arlindo, que ficava na Estrada de Botafogo, quando meu pai chegou com uma caixa de lindos botões da marca Cracks da Pelota. Colar os escudinhos do Fluminense nos botões de plástico transparente, sem cor, foi uma responsabilidade: eu sabia que aquilo era muito sério.
Em poucos anos, eu ouvia um rádio Telefunken bem grandão para ouvir as narrações dos jogos. Meu pai me levou ao Maracanã lotado várias vezes, com 120 ou 130 mil pessoas, uma experiência pela qual ninguém passa imune. Eu lia O Dia, O Globo, Jornal do Brasil e Jornal dos Sports, até o Pasquim falava de futebol, a Revista Placar era maravilhosa. Jogava bola na rua, na vila ao lado do prédio onde morava, e também na praia de Copacabana, alternando as traves do Juventus e do Bairro Peixoto. Disputava campeonatos de botão com Augusto Arromba, Marcelo Batista, Luis Fernando Gomes Minas e o saudoso Fredão. Joguei também com meu amigo Leonardo Tigre Maia, que era meu colega de escola e, anos depois, de faculdade. Na casa do Fred, Luis e Floriano Romano eram figuras presentes, e também jogávamos nas casas deles.
Com 13 anos, eu já ia para o Maracanã sozinho toda semana, jogava botão sozinho, criava finais imaginárias em casa, disputava duplas e praia sempre que possível à noite, peladas na quadra da Lagoa e no Corpo de Bombeiros da Xavier da Silveira. Edinho era meu herói dos gramados. Eu respeitava adversários terríveis como Roberto Dinamite, Tita e Mendonça. Tentei fundar uma torcida organizada com Toninho e Ricardo, filho de Silério, que era amigo de meus pais e trabalhava num prédio da Rua Santa Clara – eles declinaram e deixei de ser o mais jovem presidente de torcida do país. Colecionava muitos botões que minha mãe me dava de presente, com todo o sacrifício financeiro – eu os tenho até hoje.
Quando fiz 15 anos, o Fluminense estava prestes a viver anos incríveis e inesquecíveis. Eu estava lá em todas. Deste então, se passaram quatro décadas. Respirei futebol o tempo todo, e continuo sendo o garoto que se encantava com os botões de plástico, as figurinhas da Copa de 1970, o grande anel do céu a ser observado por quem se deitava num degrau da geral do Maracanã. Por isso escrevi até aqui muitos livros sobre o assunto, afora os inéditos e inacabados: é que eu continuo procurando por todos os lados o cheiro do cachorro quente, das laranjas, os vendedores de Coca-Cola que mais pareciam astronautas da arquibancada – todos de branco, com capacete e o refrigerante às costas num tanque que mais parecia de oxigênio. Eu procuro a nuvem espessa de pó de arroz, o mar de bandeiras e também a oposição do outro lado. Eu procuro o velho obelisco, as caminhadas da Praça da Bandeira até o Maracanã, os sinais das estações de rádio que ecoavam por toda a arquibancada nos minutos finais de jogo, o pacotinho de batata frita Guri no bar fuleiro, a voz de Victorio Gutemberg saindo por altofalantes abafados e dando os resultados da loteria, os garotos pobres e descalços na bilheteria que choravam ao ganhar um ingresso do meu pai – ele também chorava, o lindo placar de lâmpadas que inunda meus sonhos, os passageiros do ônibus na volta de um clássico qualquer – risos, piadas, incorreções e abraços.
O Maracanã por muito tempo foi o lugar onde eu vi os ricos e os pobres se abraçando de verdade, como se fosse amizade e parceria, o único lugar. E que choravam juntos num insucesso.
Ainda procuro os garotos jogando botão debaixo da escada rolante do shopping dos antiquários, ou chutando bola na trave do Juventus com a praia deserta, ou ainda fazendo a de fora na Vila Tenreiro Aranha para se sentirem heróis entre traves imaginárias feitas com chinelos ou pedras.
No começo da temporada carioca de 2005, o time da rua Bariri aprontou em pleno Maracanã.
23/01/2005 – 17h58
Flamengo dá vexame na estréia do Estadual
Do Pelé.Net
No Rio de Janeiro
A política do “não investimento” do Flamengo sofreu um duro golpe na tarde deste domingo. Depois de dispensar mais de uma dúzia de jogadores e contratar apenas quatro para compor o elenco, o Rubro-Negro apanhou por 3 a 0 para o Olaria, no Maracanã, na estréia do Campeonato Estadual. Os gols, todos marcados no primeiro tempo, foram de Edvaldo e William (2).
O catastrófico resultado deve provocar mudanças na Gávea. Inconformada, a torcida protestou contra a diretoria e clamou pela contratação de atletas de renome. Uma das primeiras mudanças pode ser a troca de treinador. Júlio César Leal seria convidado a assumir o cargo de diretor técnico e um novo profissional assumiria o comando da equipe.
Curiosamente, o Olaria tem sido o algoz recente do Flamengo. Nas três últimas partidas entre os clubes, o time do subúrbio saiu vencedor (2 a 0 em 2003 e 1 a 0 em 2004). Essa foi a primeira vez na história que a agremiação da Rua Bariri marcou três gols no adversário em um mesmo jogo.
A vitória garantiu aos comandados de Arthurzinho a liderança do Grupo B, com três pontos. Já o atual campeão do estadual fica na lanterna e acumula a segunda derrota consecutiva do ano (quinta-feira havia perdido por 1 a 0 para o Volta Redonda).
Na segunda rodada da Taça Guanabara, o Flamengo enfrenta o Madureira, às 16h, em Conselheiro Galvão. Por sua vez, no mesmo dia, o Olaria enfrenta a Cabofriense, às 20h30, no estádio Alair Corrêa.
O jogo
Atuando com sete jogadores formados em suas divisões de base, o Rubro-Negro começou a partida errando diversos passes e proporcionando contra-ataques ao Olaria. Em um deles, aos 6min, William recebeu na ponta direita, mas finalizou sem perigo ao gol de Diego.
Passada a ansiedade inicial, o time da Gávea dominou a intermediária adversária, mas só arrematou aos 14min. Marcos Denner lutou e a bola sobrou para Dimba. Contudo, o camisa 9 teve dificuldade para dominar e, pressionado pelos zagueiros, chutou fraco à direita da baliza.
A morosidade da partida só foi interrompida aos 24min, com o gol do Olaria. França cruzou da esquerda, Edvaldo subiu mais que Fabiano e cabeceou no canto esquerdo.
Inconformada com a apatia da equipe, a torcida rubro-negra começou a apupar os jogadores aos 30min. Aos 34min, Da Silva arrancou pelo meio e achou Dimba na ponta direita. Ele cruzou e Jarró conseguiu jogar pela linha de fundo. Na cobrança de escanteio, Júnior pegou de peixinho, mas Marcos Leandro conseguiu fazer a defesa.
Em erro clamoroso de marcação do Flamengo, aos 39min, William recebeu livre na entrada da área, mas demorou e o arremate acabou bloqueado por Fábio. Porém, na continuidade da jogada, a bola foi alçada na área, aos 41min, e o mesmo William, de novo em cima de Fabiano, subiu mais que a zaga e marcou o segundo.
Sem qualquer arrumação, o clube da Gávea deu continuidade ao seu primeiro tempo dos horrores e sofreu o terceiro gol dois minutos depois. William aproveitou cruzamento de Léo da esquerda e, de primeira, não deu chances de defesa ao goleiro.
Ante o resultado catastrófico, a torcida do Flamengo voltou suas baterias para o presidente Márcio Braga e exigiu a contratação de jogadores.
Acreditando numa virada quase utópica, os jogadores rubro-negros voltaram do vestiário mais dispostos. A 1min, Júnior cruzou, mas Marcos Denner desperdiçou a chance. Temerário com a reação dos aficionados, Márcio Braga deixou o Maracanã ainda antes dos cinco minutos.
Aos 5min, Fabiano falhou grotescamente e Edvaldo chutou com força. Atento, Diego saltou e defendeu sem dar rebote. A equipe rubro-negra quase diminuiu aos 9min. Da Silva arriscou da entrada da área e Marcos Leandro espalmou.
Dois minutos depois, André Santos cruzou e Dimba cabeceou rente à trave. A chuva de gols perdidos pelo camisa 9 continuou aos 14min. André Santos, que entrou bem no lugar de Júlio Moraes, assistiu Zinho. O meia chutou, o goleiro rebateu e o atacante, dentro da pequena área, arrematou por cima do travessão.
Com um a mais depois da expulsão de Léo, o Flamengo pressionou. Aos 22min, Dimba cobrou falta e o goleiro do Olaria espalmou. Um minuto depois, Ibson recebeu na área, mas chutou fraco e facilitou a intervenção de Marcos Leandro. Já quase sem tempo hábil para a reação, Júnior, aos 30min, chutou da entrada da área e o camisa 1 rival conseguiu impedir o primeiro gol flamenguista.
Esperando a estréia do Fluminense, que aconteceria às 18h, a torcida tricolor aproveitou-se da humilhação do rival para entoar o tradicional “olé”. Aos 38min, Dimba acertou a trave. Na última chance de o vexame ser diminuído, Adrianinho chutou forte e Marcos Leandro defendeu.
FLAMENGO: Diego; Fábio (Adrianinho), Thiago, Fabiano e Júlio Moraes (André Santos); Da Silva, Júnior, Ibson e Zinho; Marcos Denner (Bruno) e Dimba; Técnico: Júlio César Leal
OLARIA: Marcos Leandro; Domício, Betinho (Fabão), Berg e Jarró; Marcelo Souza (Valtinho), Júlio César, França (Dedeco) e Léo; William e Edvaldo; Técnico: Arthurzinho
Local: Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ)
Árbitro: Wagner Tardelli
Assistentes: Dibert Pedrosa e Elson Passos Sena Filho
Cartões amarelos: França (O), Da Silva (F), Léo (O), William (O), Júnior (F)
Cartão vermelho: Léo (O)
Gols: Edvaldo, aos 24min; William, aos 41min e aos 43min do primeiro tempo
Do tempo em que o futebol tinha pontas e enchia os estádios brasileiros, um jogador de apelido curioso marcou época nos anos 1970, tendo jogado por três grandes clubes do Rio de Janeiro e dois de Pernambuco durante a carreira.
Jorge Luiz da Silva, o Fumanchu, começou sua carreira no Castelo do Espírito Santo, a seguir se transferindo para o Vasco. Ao chegar ao time profissional, foi emprestado para o Sport do Recife, voltou, foi titular e depois acabou negociado com Santa Cruz, onde encontraria aquele que seria seu parceiro de ataque em Nunes. Em 1978 os dois foram para o Fluminense; ambos foram negociados com o futebol mexicano (Fumanchu com o América do México, Nunes com o Monterrey) e depois se encontraram no Flamengo.
Com o fim da carreira de jogador no ano de 1985, Fumanchu se formou como treinador de futebol, mas nunca exerceu o ofício. Seu destino era outro: virou radialista e, há muitos anos, milita na imprensa esportiva do futebol capixaba.
A origem do apelido é graciosamente contada pelo próprio Fumanchu, numa matéria publicada pelo jornal O Dia em 2015: “Ganhei o apelido no Vasco, depois de assistir a um filme de caratê no Largo da Cancela, em São Cristóvão. Gostei tanto que voltei a pé para São Januário dando pontapés e golpes na rua e me apelidaram. Mas zanguei e foi aí que pegou mesmo”, lembra o velho atacante: “Hoje agradeço, pois meu nome de batismo é comum. Se não fosse Fumanchu talvez não seria conhecido como sou até hoje”. Confira a íntegra aqui.
Fumanchu em ação pelo Fluminense contra o Vasco
Marcando quatro gols na vitória do Santa Cruz sobre o Campinense por 6 a 0
Algumas imagens do maravilhoso documentário brasileiro de Pedro Asbeg e Renato Martins, “Geraldinos” (2015), que conta a história da Geral do Maracanã, carinhosamente conhecida como “o espaço mais democrático do futebol carioca”, extinta em 2005.
SINOPSE
“Construído em 1950 para a primeira Copa no Brasil, o Maracanã foi, por 60 anos, o espaço mítico do futebol-arte. Nesse território, a “Geral” era o lugar destinado ao povão. Não havia como jogadores e técnicos deixarem de ouvir as críticas e até xingamentos dos torcedores apaixonados, figuras não raro folclóricas que ficavam bem perto do campo. Dedicado à memória destes torcedores, o filme analisa as mudanças na reforma do estádio, em 2010, que decretaram não só o fim da concepção de um espaço para todos, mas a instalação de um modelo mais elitista de espetáculo e de cidade”.
A homenagem do eterno Canal 100 ao time rubro, que sempre tem espaço em todos os corações. Especiais participações de Luisinho Lemos e Achilles Chirol. E ainda uma entrevista de Jorge Kajuru com Edu, o maior ídolo da história do America.
Em 26 de março de 2013, o estádio do Engenhão foi interditado pelo suposto risco de morte que oferecia a seus frequentadores, com o possível risco de queda de sua cobertura. Desde então, sofreu uma reforma multimilionária de modo a receber os Jogos Olímpicos de 2016.
Pelo visto, trata-se de uma história com variáveis complexas e de causar desconfiança.
Matéria divulgada pela CBN neste 4 de outubro, assinada pelo jornalista André Coelho, revela que um laudo dá como desnecessária a dita reforma.
Um novo estudo afirma que a prefeitura do Rio não precisava ter interditado o Estádio Nilton Santos, o Engenhão, por quase dois anos e que a cobertura da arena não apresentava riscos. De acordo com a análise, foi desnecessária a obra de R$ 100 milhões para o reforço da cobertura.
O laudo concluiu que as falhas encontradas eram diferenças normais para construções de grande porte e que não havia sinal de desgaste. As ferrugens nos arcos de sustentação, que se tornaram símbolo do problema, eram, na verdade, falta de manutenção da pintura.
Veja os links abaixo, que ajudam a tentar entender essa verdadeira caleidoscópio da soma de forças.
Quando o Maracanã era o Maracanã, mesmo com a bagunça que era o futebol brasileiro, o encontro semanal da bola acontecia de forma especial – mas não exclusiva – às cinco da tarde no maior estádio do mundo. E invariavelmente duas horas antes, acontecia a preliminar de juvenis, que depois foram transformados em juniores. Bem antes disso tudo, havia o campeonato de aspirantes, com jovens jogadores que ainda não eram aproveitados nos times principais.
Você conhecia os futuros craques do seu time – porque eles continuavam no clube, eram profissionalizados e jogavam algumas temporadas antes de serem negociados. E também engolia a seco as ferinhas dos times adversários. Todo mundo sabia tudo com um ou dois anos de antecedência, e aqueles jogadores iam formar a base dos times cariocas, salvo uma ou outra transação. Quando eram efetivados nos profissionais, poucos jogadores não estavam acostumados ao Maraca lotado – e quem jogou nele, joga em qualquer lugar. Anos depois, a euforia pela consagração de atletas ou a tristeza pelo fracasso de promessas tão aguardadas.
Um belo dia, inventaram que o gramado ficava desgastado demais com partidas preliminares. O homem aperfeiçoou o avião, o computador, criou o telefone móvel, a TV a cabo, as novas armas de guerra e acreditem: a única coisa que não evoluiu foi a grama dos estádios. Ela piorou. Então podia ter preliminar nos anos 1950, 1960, 1970, 1980, 1990 e… não deu mais.
Os jogos dos juniores passaram a ser disputados em horários alternativos, em dias alternativos e, apesar da farta informação que hoje temos por causa da internet, muito pouco noticiados. Resultado: há uma vida no mundo do futebol que pouquíssimos conhecem, porque é disputada nas sombras. No mínimo, gera a desconfiança de que tal arranjo é proposital: quanto menos forem vistos os jogadores da base, mais fácil é negociar direitos federativos sem que os torcedores exerçam poder de pressão.
Feito para que o Brasil tivesse um berço esplêndido da conquista de 1950, o Maracanã mal nasceu e já carregava consigo o peso do fracasso, tudo porque a politicagem fez crer que o Mundial já estava assegurado. Mas o abalo com o Mundial conquistado pelo valentes uruguaios teria data de validade.
Menos de quinze anos depois, o Brasil já seria bicampeão do mundo, os clássicos abarrotariam o futuro estádio Mário Filho e este seria uma referência mundial do esporte e dos eventos brasileiros. Do Santos, esquadrão maior da Terra, passando pelo Botafogo de Garrincha e muitos, pela Máquina Tricolor, pelo Flamengo dos anos 1980, o Vasco dos 1990, o Maraca enfrentou dramas e, aos poucos, foi sofrendo intervenções que o descaracterizaram, até se tornar o que é hoje: um elefante branco enrustido.
O Mundial de 2014 passou, as Olimpíadas de 2016 também. Há indícios de que ele passe a ser a casa do Flamengo, como se já não tivesse sido desde o começo, embora não exclusiva. O problema é quando se abre mão dos outros protagonistas cariocas, seja pelo desinteresse deles, seja pelos altos custos, seja por outros fatores.
O Vasco tem o belo e mitológico São Januário, que não comporta sua enorme torcida em momentos culminantes. O Botafogo está satisfeito com o Engenhão, embora tenha conseguido seus últimos grandes públicos na década no Maracanã, por ocasião da disputa da Libertadores. O Fluminense anuncia o terreno para a construção de um novo estádio, sem saber o que fará com o centenário estádio das Laranjeiras, mas também dizendo que “não abrirá mão do Mário Filho”. E o Flamengo, depois de trocentos projetos de arena própria, quer o Maracanã, mas não se furta a disputar jogos em outras praças, contando com seus torcedores país afora.
A redução do Mário Filho atendeu ao projeto concebido por João Havelange à frente da FIFA, e que se espalhou pelos continentes. Novos e modernos estádios, menos público, ingressos majorados e o povo que se vire na TV, porque a elite econômica mantém as arquibancadas. Num primeiro momento, era a viabilidade de lucro máximo do mundo corporativo da bola, com êxito na Europa de capitais próximas umas das outras, com enorme malha férrea e metroviária, mas no Brasil e especificamente no Rio não deu certo: quem sempre encheu o Maraca foi o povão dos trens e ônibus. Era uma programação popular, acessível, que se perdeu. Resumindo: tiraram o povo do estádio, causaram a uma geração inteira a indiferença ao Maracanã, raras vezes a população mais abonada comprou a causa dos jogos e agora ele é um bonecão do posto, descaracterizado, artificial, sem carisma. Curioso que apontem isso como a modernidade: provavelmente nenhum executivo da NFL teria essa mesma visão. Há os que falam que o futebol mudou e é um fato, mas não precisava ser para pior.
Sem a volta do povo que realmente ama o futebol e faz dele uma procissão permanente, o Maracanã está condenado ao ocaso e a ser lembrado apenas como algo da antiga – porque o Flamengo, mesmo com toda a sua força, não terá como preenchê-lo sozinho permanentemente, se for o caso. Com tantos campeonatos, transmissões, internet, notícias fake, redes sociais e concorrência diária, o futebol começa a ser desimportante pelo fastio. Há um excesso de jogos, competições, disputas e tudo isso vai minando o aspecto principal: o interesse do público alvo, o torcedor. Se hoje há uma enorme concorrência entre o futebol e outras formas de lazer, promover e popularizar o espetáculo é fundamental.
O Brasil só se tornou pentacampeão do mundo porque a paixão pelo futebol rompeu barreiras e fronteiras, tendo o Maracanã como seu teatro maior. E se a sua utilização e finalidade não forem revistas, atendendo aos critérios de propagação do esporte e integração social, provavelmente todos veremos um tiro no pé da nossa maior paixão. Mesmo desfigurado e trucidado pelos podres poderes, ele tem boas chances de cura. É preciso trazer o povo de volta, de todas as bandeiras e para ontem, antes que seja tarde e o Maracanã perca sua finalidade essencial, se já não for.
As pessoas estão cansadas das novelas da TV, e o futebol está se tornando uma delas.
Há pouco, tive uma pequena e inevitável melancolia que todos os órfãos sentem, sem importar a idade. Coisa das onze da manhã de domingo. Pensei no meu pai, que está irremediavelmente morto há oito anos, e quando eu era um menino cheio de sonhos e de futuro em 1979, com dez anos de idade.
O meu domingo de torcedor mirim era acordar cedo, ouvir o programa do Valdir Vieira no rádio, esperar dar onze da manhã para que a TV Bandeirantes transmitisse alguma partida do campeonato paulista. No intervalo do jogo, geralmente almoçávamos lasanha, frango assado ou bife. Terminado o jogo, entrava no ar o programa Conversa de Arquibancada, apresentado pelo jornalista Hamílton Bastos, com representantes das torcidas dos clubes cariocas discutindo o futebol.
Fim de programa, descíamos para o ponto de ônibus da rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana. Vinha o ônibus 434, branco, com uma faixa cor de vinho e a outra, azulada. Então fazíamos o mais charmoso percurso de transporte coletivo da cidade do Rio de Janeiro: Zona Sul, Lapa, Praça XI, Praça da Bandeira e logo ali já se via o cenário dos sonhos – centenas de pessoas caminhando em direção ao estádio do Maracanã.
Rapidamente comprávamos nossos ingressos – quando tinha algum sobrando, meu pai comprava outros para dar aos meninos pobres que ficavam perto da bilheteria pedindo. Vi vários deles chorarem por isso. Passávamos pela apertadíssima roleta e logo a rampa do Maracanã desfraldava o espetáculo – as camisas das torcidas organizadas, em exposição para venda, presas nas colunas de sustentação.
Três da tarde, muita gente em muitos jogos e a preliminar de juvenis, depois denominada de juniores. Os grandes craques do futuro desfilavam a valer no gramado do Maracanã. Eu olhava tudo: o jogo, o campo, as arquibancadas, as bandeiras, os cantos. Era uma experiência multisensorial. Quando surgia uma imensa nuvem dos céus nos abraçando, quando o nosso time entrava em campo, eu já sabia que um grande jogo estava acionado para decolar. Fiquei tão encantado por aquilo tudo que investi boa parte de minhas mesadas, moedas e congêneres vendo partidas e partidas, do time do meu coração e dos demais.
Nem sempre ganhamos. Perder fazia parte do jogo. Mas era bom demais ver o jogo no estádio naqueles tempos. Vinha gente de todos os lados, as pessoas confraternizavam, eu não via batalhas de ódio. É claro que havia problemas, mas o saldo era altamente positivo. E assim foi por anos e anos, por mais de trinta deles, até o dia em que em nome da modernidade, resolveu-se que o Maracanã seria posto abaixo, mantendo sua fachada. E os gols do Fantástico? E a resenha da TVE?
O tempo passou. Os torcedores foram alijados da grade da TV. As preliminares acabaram para preservar o gramado – leia-se ocultar os craques mais jovens e facilitar transações. O rádio perdeu força. Meu pai disse adeus para sempre. Lasanha em família, nunca mais. Nem o 434, que depois virou laranja e agora é cor de prefeitura – com trajeto encurtado.
Quatro da tarde, mudo os canais de futebol no controle remoto. Há muitas opções, nenhuma delas dotada de plena qualidade. O Maracanã morreu: virou um trambolho sem alma. Hoje está fechado.
Acabou de sair um belo gol do Corinthians contra o Santos, disputado na Vila Belmiro. Nos tempos da lasanha, era Morumbi cheio. Agora tem torcida única, vinte mil torcedores em vez de cinco vezes mais.
Os estádios são lindos, corfortáveis, assépticos, diferenciados. Na televisão, ficaram todos iguais. É difícil distinguir um do outro. Só lhes faltam a alma, o charme, o encanto. O narrador acaba de dizer que o futebol é um espetáculo para a família. Tudo bem, mas não seria melhor que fosse para o torcedor?
O meu time é um arsenal de mentiras e falsas promessas. Ainda o amo, torço muito por ele e espero que vença amanhã.
Onde foi que meu domingo acabou?
Tenho um palpite: quando a ganância corporativa engoliu o futebol.
Antes de ter sido assassinado em 2010 para dar vez à uma arena goumetizada, o Maracanã já tinha penado com reformas sucessivas em nome da modernidade. A primeira, benéfica, elevou a altura do piso da geral entre 1984 e 1985. A segunda, por conta do trágico acidente na final do campeonato brasileiro de 1992.
Depois, tome 2000, 2005 e, finalmente em 2010, o falecimento em nome da Copa do Mundo de 2014, cujo final para nós é desnecessário de lembrança.
As outras mexeram com várias estruturas, mas nada se comparou a esta última, que não se limitou a uma obra devastadora, mas também gerou danos sociais que parecem irreversíveis.
O povão que ocupou o velho Mário Filho por 60 anos foi varrido de vez. De acordo com uma “tendência mundial”, o monumental estádio foi destruído, dando vez a um substituto menor, completamente desprovido de alma e carisma, incapaz de tirar seu novo público-alvo dos Village Malls da vida, com os torcedores mais humildes – o grosso histórico do grande público médio presente antes – definitivamente alijados para bares, biroscas perto de casa ou a popular gatonet.
Resultado? Com exceção da Copa do Mundo, a nova arena jamais teve sua lotação esgotada, perdeu o posto de palco dos clássicos abarrotados, tornou-se um elefante branco na prática e agora depende de providências da prefeitura do Rio para sua reinvenção. Ah, mas é uma tendência mundial! Com o nosso país do tamanho de um continente, havia outras alternativas.
Estamos em 2016. Metade do tempo da década atual teve o Maracanã fechado. Crianças já cresceram sem o costume de ir ao estádio – e, talvez por isso também, muitas usam tanto as camisas de Barcelona, Real Madrid, PSG e outras grandes equipes europeias. Adultos perderam o costume de frequentar o futebol no campo. Para muitos torcedores dos grandes clubes cariocas, a referência de futebol passou a ser uma distância: a outra cidade, o outro Estado.
Silenciosamente, vivemos fora dos gramados a mesma crise dentro dele: basta ver quantas vezes nos últimos anos o Rio teve redução dos participantes na primeira divisão do futebol brasileiro.
Segundo especialistas, é uma tendência mundial.
Resta saber então porque os estádios alemães, ingleses, franceses, portugueses e até estadunidenses têm casa cheia enquanto os nossos, salvo raras exceções, estão à míngua.
A se manter o cenário atual, no futuro nenhum estádio nosso precisará de arquibancadas, porque não teremos público presente e todos se esbaldarão em frente à TV ou computador para ver mais um capítulo da eterna novela da bola, sem final feliz.
Hoje é mais um domingo sem Maracanã. Os torcedores do mundo corporativo desdenham da ausência: “Daqui a pouco ele volta”. A realidade parece outra: distância, indiferença e a perda de nossa principal casa do povo carioca, trocada pela força da grana que ergue e destrói coisas belas, incapaz de é para entender o que significa a alma, o espírito do futebol no Rio de Janeiro e no Brasil.