PELÉ (1940-2012) (por Paulo-Roberto Andel)

Faleceu o Atleta do Século XX – o do XXI, ainda não temos certeza ou talvez nem tenha surgido ainda.

O brasileiro mais conhecido do mundo.

Ao lado de nomes como Oscar Niemeyer, Tom Jobim, Carmen Miranda, Glauber Rocha, Lula e Paulo Coelho, dentre outros, Pelé foi um embaixador do Brasil na Terra. O maior de todos eles.

Também o maior jogador de futebol de todos os tempos. Todos, sem exceção, sem necessidade de teoremas confusos e verborragia barata. Com todo respeito aos que discordam desta sentença, não tenho tempo a perder.

Dentre os gigantes da história do futebol, Pelé foi o maior porque nenhum outro fez mais de 1.200 gols, nem ganhou três Copas do Mundo, nem municiou sete dos dez maiores artilheiros da história de um clube de futebol, somando mais de 1.700 gols. Nenhum outro dos maiores craques de todos os tempos tem geniais gols perdidos como ele na conquista de um título mundial – basta lembrar das jogadas maravilhosas contra a Tchecoslováquia e Uruguai no México em 1970 (quando o Brasil deu o troco de 1950), frequentemente reprisadas 50 anos depois. Está tudo no YouTube, felizmente.

Até 1958, o Brasil era um ponto de interrogação no mundo, frequentemente ligado às zombarias da Disney. A infeliz derrota de 1950 nos fragilizou a ponto de Nelson Rodrigues denunciar o complexo de vira-latas como um paradigma brasileiro. A imortal vitória na Suécia transformou a nossa imagem diante do mundo, e o país experimentou uma euforia jamais vista: numa só tacada, vieram à luz a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro Brasileiro de Comédia, o futebol brasileiro, o Concretismo, o desenvolvimento à vista, a reforma gráfica nos jornais começada pelo Jornal do Brasil (com Janio de Freitas, ele mesmo) e os sinais de que finalmente o país daria certo.

Entre 1958 e 1970, Pelé deu as cartas no futebol. Fez centenas de gols, liderou o Santos à gloria mundial – lotando o Maracanã com 250 mil torcedores em dois dias – e escreveu boa parte das melhores histórias da Seleção Brasileira.

Ao lado do gênio Garrincha, Pelé disputou 40 partidas com a camisa amarela. Nunca perdeu um jogo.

Há muitos dados que poderiam caber aqui, mas tudo é pequeno diante da despedida do Rei. Ele está para o esporte assim como Miles Davis está para o jazz, Pablo Picasso para as artes plásticas, Saramago para a literatura e Bob Dylan para a canção. Gente que, diante de tanta gente espetacular, teve em si as vírgulas para sobressair.

Ademir da Guia, Dicá, Rivellino, Zico, Sócrates, Falcão, Messi, Maradona, Di Stéfano, Didi, Gerson, Dirceu Lopes, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Cruyff, Paulo Cezar Caju, Platini, Puskás e tantos monstros do futebol mundial, jogadores colossais, ficam todos no pódio com a prata. O ouro é do Rei. Quem tiver dúvidas, deixe de lado a teimosia e se delicie no YouTube.

Para fechar, gostaria de recontar uma história testemunhada por meu querido amigo, o sociólogo Marcelo Rodrigues Lessa , que por muitos anos foi vizinho de Altair, lateral esquerdo do Fluminense, campeão mundial de 1962 pela Seleção. Durante anos, a filha de Altair teve um sério problema de saúde que exigia uma caríssima medicação trazida do estrangeiro. Por anos a fio, Pelé bancou a importação regular dos remédios. Esta é apenas uma de centenas de iniciativas que jamais ganharam as páginas dos jornais porque, claro, a prioridade é das notícias ruins, muitas vezes manobradas.

Há pouco, Lula e Gilberto Gil se manifestaram sobre a passagem de Pelé. Torcedores comovidos ocupam o Museu do Futebol em São Paulo e o Maracanã, no Rio. Noticiários do mundo inteiro anunciam a relevância do Rei. Populares lamentam nos ônibus e trens.

Vai-se embora um homem que desafiou definições, conquistou o planeta e escreveu uma história vitoriosa. Humano, errou e acertou, acertou muito mais do que seus detratores. Um homem que jamais foi visto em público com agressividade, falta de educação e elegância. Um homem negro que ganhou a admiração e o respeito de milhões de homens brancos, negros, amarelos, de todas as matizes e diversidades. Um homem que encantou o olhar adolescente de meu pai.

Um homem que, a seu modo, mudou o mundo.

@pauloandel

Algumas palavras sobre Pelé (por Paulo-Roberto Andel)

O ano está acabando, o Natal está aí. No hospital, Pelé joga a partida mais difícil de sua longa e vitoriosa vida.

Como é sabido publicamente, seu estado de saúde piorou e o Rei está à base de medicação paliativa. Em português direto e reto, o câncer é incurável, já se alastrou e não há nada a fazer.

Já li, escrevi e debati muito sobre Pelé. Fui chamado de alienado por conta da questão de sua filha Sandra, até hoje sem a devida luz pública. Novamente alienado porque Pelé não teve posições combativas à ditadura no Brasil, nem se colocou de maneira antirracista.

Queiram desculpar. Nada tenho de alienado. Nem aqui, nem na China.

Sobre a questão de Sandra, filha de Pelé, não me cabe julgar nem apedrejar, apenas tentar entender o problema, explicado ao jornalista Milton Neves, sabendo também que, anos depois de Sandra, Pelé reconheceu outra filha, Flávia.

A respeito da ditadura, cabia a Pelé o papel de líder revolucionário para derrubá-la? Faça-me o favor. Sou filho e sobrinho de pessoas presas e torturadas pela ditadura. Deixo aqui uma expressão simples mas que, para mim, traduz a questão: o buraco é mais embaixo.

A simples presença de Pelé como ídolo maior do Brasil era uma postura antirracista, mesmo que involuntária. Desde fins dos anos 1950, ele é uma presença permanente no imaginário brasileiro. Se Pelé não tinha o domínio antropológico e científico do combate ao racismo, o fez do seu jeito. Sim, há 60 anos temos um ídolo negro permanentemente na TV, jornais, rádio e internet. Ok, Pelé nunca assumiu o discurso antirracista? Mas será que ele mesmo, com todo seu poder e dinheiro, também não foi vítima de racismo?

Pelé não foi apenas o maior jogador de todos os tempos, mas o Atleta do Século XXI, supremo na comparação com todos os esportes. Para quem tiver dúvidas, está tudo no YouTube e nos livros.

Dele, nunca se viu em público um único ato de rispidez, grosseria ou prepotência. Nunca. Ciente de seu lugar no topo, sempre respeitou outros grandes craques e até errou feio ao indicar seus sucessores nos gramados. Seria compreensível que fosse um homem até arrogante, com empáfia decorrente de seus feitos, mas nunca agiu assim. Nunca. Podem pesquisar.

Pelé ajudou muita, mas muita gente. Amigos como Altair, lateral campeão mundial de 1962, no tratamento de sua filha, que exigia medicação importada por longo tempo, a milhares de vítimas das chuvas em 1979, quando Flamengo e Atlético Mineiro fizeram um amistoso com renda revertida para a causa dos desabrigados. Ao jogar meio tempo para o Fla, Pelé provocou a quebra do recorde nacional de renda à época, mais um bom dinheiro para a reconstrução das casas perdidas.

Para aplaudir Maradona – gênio -, Cristiano Ronaldo – fenomenal – e mais recentemente Messi – monstruoso -, não é necessário diminuir o tamanho colossal de Pelé. Mbappé já é gigantesco, mas Pelé é Pelé. Ele está entre os gênios da raça, assim como Pablo Picasso, Miles Davis, Glauber Rocha, Jimi Hendrix e outros. Podemos gostar de futebol, apreciar novos craques, mas tendo a consciência de que Pelé, nem de longe, foi superado. Podemos ouvir o novo jazz, gostar, mas sabendo que Miles é Miles.

Aconteça o que acontecer nos próximos dias ou semanas – nunca sabemos -, eu só espero que respeitem Pelé. O Atleta do Século XX, o maior jogador de futebol de todos os tempos, o único jogador da Terra a ganhar três Copas do Mundo, é um idoso de 82 anos no que Gilberto Gil versou como o caminho inevitável para a morte. Criticá-lo não pode ser apedrejá-lo, e muitos dos que sonham com esse apedrejamento carregam muita hipocrisia nas costas.

A verdade é que, perto do que fez para o Brasil, Pelé nunca foi devidamente respeitado. Garrincha morreu bem mais jovem, mas também desprezado e ridicularizado. Pelé tem vivido mais tempo, com uma vida infinitamente mais confortável, mas com toda a carga de desmerecimento de sua trajetória, o que significa uma grande estupidez. Poderíamos ter aproveitado e não repetido duas vezes o mesmo erro.

Por fim, não adianta brigar com os fatos ou apadrinhar achismos. É inútil. Goste-se ou não de Pelé, ele ainda é o maior jogador de futebol da história. Reconhecer isso é apenas um exercício de lucidez. Só.

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Para os que insistem no terraplanismo futebolístico de reduzir os feitos numéricos de Pelé como Atleta do Século XX, proponho um simplório exercício de Estatística Documentária.

Vejamos os dez maiores artilheiros da história do Santos, excetuando-se o próprio Pelé, mais Feitiço (artilheiro nas décadas de 1920-30) e Araken Patuska (artilheiro nos anos 1920). Assim, são sete os maiores artilheiros santistas que jogaram ao lado do Rei.

2) Pepe, 405 gols em 750 jogos (1954-1969). Jogou 13 anos ao lado de Pelé.

3) Coutinho – 370 gols em 457 jogos (1958-1970). Jogou 12 anos ao lado de Pelé.

4) Toninho Guerreiro – 283 gols em 373 jogos (1963-1969). Jogou seis anos ao lado de Pelé.

6) Dorval – 198 gols em 612 jogos (1956-1967). Jogou 11 anos ao lado de Pelé.

7) Edu – 183 gols em 584 jogos (1966-1976). Oito anos ao lado de Pelé.

9) Pagão – 159 gols em 612 jogos (1955-1963). Sete anos ao lado do Rei.

10) Tite – 151 gols em 475 jogos (1951-1963). Sete anos ao lado de Pelé.

Nenhum dos nomes desta lista jogou menos de seis anos com Pelé de camisa 10, fazendo tabelas e recebendo passes. Somados, eles chegam à impressionante marca de 1.749 gols. Não é nenhum absurdo imaginar que Pelé tenha sido o principal responsável por municiar todos esses artilheiros. Que tenha sido por baixo em 40% das jogadas de gol (sabemos que foi mais): falamos de 700 gols pra começar a conversa. É claro que a lista contém vários dos maiores jogadores da história do Peixe, mas é impossível negar a participação direta de Pelé nas estatísticas de gol de seus companheiros.

Obs: apenas a título de curiosidade, dos dez maiores artilheiros da história do Barcelona, o espetacular Messi jogou apenas com Luisito Suárez (198 gols, o terceiro maior, seis anos jogando com Messi) e Samuel Eto’o (131 gols, o oitavo maior, cinco anos ao lado de Messi). Somados, dão 329 gols. Provavelmente Messi também teve expressiva participação em assistências para os colegas de equipe.

(Números sujeitos a retificações mínimas)

@pauloandel

@pauloandel

Pelé 80

Meio século depois de comandar o maior time de todos os tempos – a Seleção Brasileira tricampeã mundial em 1970 -, Pelé completa 80 anos.

Desde a vitória inesquecível no México, jamais foi superado, sequer igualado ou, pelo menos, tendo um concorrente em seu encalço, ainda que a cem ou duzentos metros de distância.

De lá para cá, vimos Cruiyff, Rivellino, Maradona, Rummenigge, Sócrates, Platini, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, CR7, Zidane, Messi, Neymar e mais um exército de super craques fantásticos, mas nenhum deles sequer ameaçou no o posto do Rei do Futebol, o Atleta do Século XX.

Ao contrário da praxe de um país que, a cada quinze anos, esquece o que se passou a cada quinze anos, a carreira de Pelé pode ser vista e revista de muitas formas e com franca digitalização: revistas, filmes, documentários, vídeos, livros e muitos, muitos gols e jogadas. Só desconhece sua obra quem quer.

Não é preciso concordar com as posições políticas nem com as questões familiares de Pelé – ambas dignas de crítica livre – para reconhecê-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos. E sua arte não pode ser diminuída. Não vale apenas para Pelé, mas também para Pablo Picasso, George Gershwin, Tom Jobim, Basquiat, Andy Warhol, Charles Chaplin, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Paul McCartney, Madonna, Janis Joplin, Susan Sontag, Indira Gandhi, Glauber Rocha e uma antiga lista telefônica imensa de personalidades geniais que foram – e/ou são – seres imperfeitos, simplesmente porque a perfeição plena de um ser humano não existe. Você mesmo(a) que lê estas linhas, já cometeu erros que considera até graves, mesmo que não tenham resultado na morte de ninguém? Eu cometi, reconheço e alguns deles me doem diariamente, mesmo quando eu não fui diretamente responsável, assim como algumas das pessoas que mais admirei e admiro já cometeram, inclusive contra mim. Todas estão perdoadas. Nenhuma delas foi ou é Pelé.

Gostaria de compartilhar uma pequena história de um colega, hoje jornalista consagrado, iniciante há duas décadas. Ao saber que Pelé desembarcaria nas Laranjeiras para uma reunião no Palácio Guanabara, se mandou para lá cedinho e abordou o Rei quando não havia um repórter por perto, em pleno gramado tricolor. Foi atendido com toda a gentileza em plena alvorada e, quando os seguranças chegaram perto para intervir, Pelé imediatamente pediu para que se afastassem e continuou atendendo o jovem e desconhecido repórter.

O maior craque de todos os tempos levou o nome do Brasil por todos os quatro cantos do mundo, num tempo em que o país procurava seu lugar no planeta. Seus números falam por si. Voltando às referências artísticas, muitos dizem que Nelson Rodrigues – outro brasileiro genial e que também não está isento de críticas – era o nosso Shakespeare. Outros dizem que Miles Davis – outro monstro com histórias controversas – foi o Pablo Picasso do jazz. Outros dizem que o maravilhoso Tom Jobim – que hoje seria apedrejado – foi e é o nosso George Gershwin. Pois bem, dentro das quatro linhas Pelé foi a soma de todos esses artistas geniais e mais um pouco. Carregando consigo a tradição de heróis como Friedenreich e Zizinho, ele desenhou uma carreira sem precedentes na história do futebol e hoje, quase quarenta anos depois, todos alimentamos o sonho de ver algo parecido com Pelé em campo. É difícil imaginar que ele possa ser concretizado. Pelo menos o Google e o YouTube aí estão para provar tudo que foi realizado pelo Rei.

“Vê-lo jogar, bem valia uma trégua e muito mais. Quando Pelé ia correndo, passava através dos adversários como um punhal. Quando parava, os adversários se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando saltava, subia no ar como se o ar fosse uma escada”, escreveu Eduardo Galeano, um Pelé da literatura, em seu espetacular livro “Futebol ao sol e à sombra”.

Antes disso, em 1958, escreveu Galeano: “Pelé magricela, quase menino, incha o peito para impressionar e ergue o queixo. Ele joga futebol como Deus jogaria, se Deus decidisse se dedicar seriamente ao assunto. Pelé marca encontro com a bola onde for e quando for e como for, e ele nunca falha.

Até pouco tempo, engraxava sapatos no cais do porto. Pelé nasceu para subir, e sabe disso.”

@pauloandel

Os tricampeões mundiais, 50 anos depois

Passado meio século que se completa hoje, chega a ser risível que a Seleção Brasileira tenha embarcado para a Copa do México sob absoluto descrédito. Ok, os jogos finais de preparação não foram bons, a confusão com a saída de João Saldanha era viva e, para piorar, os tempos no Brasil não tinham nada de tranquilo. Mas, ainda assim, vendo a quantidade de craques que o Brasil tinha à disposição na Copa, no mínimo era para se desconfiar da chance de sucesso.

A campanha maravilhosa de 1970, com seis vitórias em seis jogos, incluídos três campeões mundiais, não deixa dúvidas. E se o Brasil foi espetacular em 1958 e 1962, mesmo, em 1970 o auge do nosso futebol foi alcançado pela junção da excepcional condição técnica com a capacidade física: todos os seis adversários foram derrotados nos dois quesitos.

Nestes tempos de pandemia, as reprises dos jogos têm sido uma constante, o que ajuda a entender o fascínio dos mexicanos por aquele time, bem como de torcedores pelo mundo afora. E ajudam a desfazer falácias, por exemplo, a respeito de Félix, que cumpriu atuações espetaculares, e de Clodoaldo, com jogadas maravilhosas. O Brasil ganhou a Copa de ponta a ponta, sem um passo em falso sequer, e mesmo quando passou por momentos mais delicados como o primeiro gol do Uruguai nas semifinais, ou ainda o empate da Itália na final, a Seleção Brasileira jamais se abateu e manteve sua autoridade. A lição vinha de longe, doze anos antes, com Didi carregando a bola calmamente depois do gol da Suécia em 1958, para depois comandar o baile do nosso primeiro título mundial.

Cinquenta anos depois, as jogadas da Seleção no México continuam vivas demais na memória popular. Todas são reconhecidas pelos fãs de futebol, e muitas têm a assinatura de Pelé no auge de sua carreira. Deixando o goleiro tcheco Viktor desesperado com um quase gol do meio de campo, ou o uruguaio Mazurkievski a ver navios com o espetacular drible de corpo, Pelé foi tão monumental quanto nos passes para os gols de Jairzinho contra a Inglaterra e de Carlos Alberto Torres contra a Itália. Duas bombas poderosas criadas pela elegância do Rei do Futebol.

Louvar a campanha brasileira em 1970 é reconhecer que, no México, mostramos o melhor futebol de todos os tempos, com talento e resultados. Nunca mais superamos aquele momento, mesmo tendo conquistado mais Copas. Ninguém superou, aliás, mas o nosso encanto é também o sonho de, um dia, voltar a ver uma Seleção Brasileira tão poderosa e qualificada quanto aquela. Por longo tempo ainda tivemos muitos craques mas, por diversas razões, o estoque foi diminuindo, a essência do futebol brasileiro se perdeu e hoje, meio século depois, ainda nos encantamos com o futebol, mas ele não é nada perto do que já foi um dia. Não há como pensar num jogador brasileiro em 2020 que possa ser comparado aos campeões de 1970.

Eram tempos muito difíceis para o Brasil, mas o nosso futebol ajudou a aliviar as almas cansadas de milhões de brasileiros sofridos. Os campeões de 1970 ecoam em nossas mentes diariamente, seja pelos comentários de Gérson, pelas crônicas certeiras de Paulo Cezar Caju e Tostão – que outra seleção do mundo teve dois craques cronistas de alto nível? -, pelas aparições de Rivellino na TV. E, claro, por causa de Pelé. É dia de exaltá-los ainda mais, pelo que fizeram, pelo que representam e pela lucidez que nos resta. A Seleção de 1970 é nossa melhor referência e talvez só tenhamos paz no futebol quando, um dia, formos capazes de repeti-la ou, ao menos, de nos aproximarmos dela.

Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Pelé; Jairzinho, Tostão e Rivellino. E Paulo Cezar. E Marco Antônio. E Roberto Miranda. E Joel Camargo, Leão, Baldocchi, Fontana, Zé Maria…

Há cinquenta anos, vivemos um sonho que não termina.

Foto: Orlando Abrunhosa.

Nelson Rodrigues, sobre Barbosa (por Paulo-Roberto Andel)

O tempo e a eternidade

Amigos, o velho Barbosa está fora do Brasil. Mas não importa e explico: — a ausência do verdadeiro craque é tão ativa, militante e absorvente como a presença viva. Só o perna de pau consegue ser esquecido. Um Barbosa, não. Está na longínqua e quase inexistente Escandinávia e continua sendo fato, continua sendo notícia. Ausente dá uma sensação de presença física.

O velho Barbosa! Digo “velho” e já retifico: — não é velho coisa nenhuma. Amigos, não existe a menor relação entre Barbosa e a sua idade. Ou melhor: — idade e pessoa não coincidem no arqueiro vascaíno. Ele tem o quê? Uns 37, 38 anos. Para as outras atividades, o sujeito pode ter isso ou mais, impunemente. Mas o tempo, no futebol, é rapidíssimo. Um minuto vale um mês ou mais. E, aos 37 anos, o indivíduo é gagá para a bola, e insisto: — o indivíduo baba de uma velhice irremediável. A própria bola, o refuga e trai. E Barbosa continua notícia, continua fato pelo seguinte: — porque é eterno.

E quando Barbosa joga acontece apenas isto: — ele esfrega a sua eternidade na cara da gente. Há dias, escrevi, aqui mesmo, que se trata da eternidade mais viçosa já ocorrida no futebol brasileiro. No comum dos mortais, a vida é uma luta corpo a corpo contra o tempo. O sujeito olha a folhinha e toma um susto ao verificar que estamos em 59. 1959! É o caso de perguntar: — “Já?” Sim, amigos: — Já! Para Barbosa o problema de folhinha e de relógio não existe. É o homem sem tempo, que esqueceu o tempo, que vive sem o tempo, muitíssimo bem. Há os que rosnam: — “Barbosa pinta os cabelos!” De fato, tem já cabelos brancos. Aí o único detalhe de velhice na sua figura ágil, elástica, acrobática.

O problema do arqueiro, porém, não se resume ao desgaste físico. Não. Ele sofre um constante, um ininterrupto desgaste emocional. Debaixo dos três paus, parado, dá ideia de um chupa-sangue que não faz nada, enquanto os outros se matam em campo. Ilusão! Na verdade, mesmo sem jogar, mesmo lendo gibi, o goleiro faz mais do que o puro e simples esforço corporal. Ele traz consigo uma sensação de responsabilidade que, por si só, exaure qualquer um. Amigos, eis a verdade eterna do futebol: — o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários. Um atacante, um médio e mesmo um zagueiro podem falhar. Podem falhar e falham vinte, trinta vezes num único jogo. Só o arqueiro tem que ser infalível. Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol, e, numa palavra, a derrota. Vejam 50. Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso geral, numa pane coletiva. Não. O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta da derrota. O gol de Ghiggia ficou gravado, na memória nacional, como um frango eterno. O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da espanhola, do assassinato de Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado “frango” de Barbosa.

Qualquer um outro estaria morto, enterrado, com o seguinte epitáfio: — “Aqui jaz Fulano, assassinado por um frango.” Ora, eu comecei a desconfiar da eternidade de Barbosa quando ele sobreviveu a 50. Então, concluí de mim para mim: “Esse camarada não morre mais!” Não morreu e pelo contrário: — está cada vez mais vivo. Nove anos depois de 50, ele joga contra o Santos, no Pacaembu. Funcionou num time de reservas contra um dos maiores, senão o maior time do Brasil. E foi trágico, amigos, foi trágico! Começa o jogo e, imediatamente, Pelé invade, perfura e, de três metros, fuzila. Fosse outro, e não Barbosa, estaria perguntando, e até hoje: — “Por onde entrou a bola?” Barbosa defendeu e com que soberbo descaro! Daí para frente, a partida se limitou a um furioso duelo entre o solitário Barbosa e o desvairado ataque santista. Foi patético, ou por outra — foi sublime. E porque, na sua eternidade salubérrima, ainda fecha o gol, eu faço de Barbosa o meu personagem da semana.

Publicado na Manchete Esportiva, 30/5/1959, e também em “A Pátria de Chuteiras”, 2013, página 72

O futebol de Chico Buarque (da Redação)

chico buarque jogando

A ligação de um dos maiores artistas brasileiros com o nosso esporte predileto vem de longe. Chico Buarque sempre enalteceu o futebol em diversas passagens de sua obra.

Torcedor do Fluminense e frequentador do Maracanã, fundou a torcida Jovem Flu ao lado de outros próceres das artes. Até hoje promove grandes campeonatos de pelada em sua casa.

Em 1989, compôs “O futebol”, delicioso resgate dos tempos em que éramos os reis dos gramados, com jogadores inesquecíveis e inigualáveis. Confira.

Para estufar esse filó
Como eu sonhei

Se eu fosse o Rei
Para tirar efeito igual
Ao jogador
Qual
Compositor
Para aplicar uma firula exata
Que pintor
Para emplacar em que pinacoteca, nega
Pintura mais fundamental
Que um chute a gol
Com precisão
De flecha e folha seca

Parafusar algum joão
Na lateral
Não
Quando é fatal
Para avisar a finta enfim
Quando não é
Sim
No contrapé
Para avançar na vaga geometria
O corredor
Na paralela do impossível, minha nega
No sentimento diagonal
Do homem-gol
Rasgando o chão
E costurando a linha

Parábola do homem comum
Roçando o céu
Um
Senhor chapéu
Para delírio das gerais
No coliseu
Mas
Que rei sou eu
Para anular a natural catimba
Do cantor
Paralisando esta canção capenga, nega
Para captar o visual
De um chute a gol
E a emoção
Da idéia quando ginga

(Para Mané para Didi para Mané / Mané para Didi/ para Mané para Didi para
Pagão/ para Pelé e Canhoteiro)

1958, há 58 anos (por Paulo-Roberto Andel)

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Era uma vez um país tímido mas alegre, humilde e pobre, sedento de progresso, com seus menininhos negros e descalços,chutando bolas em campinhos de terra batida ou na rua.

O país que queria ter sido grande em 1950, mas que acabou chorando a ponto de ter vários suicidas no Maracanã e em toda a velha Guanabara. Que teria grandes traumas cotidianos a seguir.

E que também pagava merrecas aos seus jogadores de futebol, mesmo os que defendiam a Seleção Brasileira (com camisas improvisadas).

Há 58 anos, um país desafiava todas as definições e tomava o futebol mundial como protagonista. Daqui saiu desacreditado. Olhando para trás, como seria possível não confiar em Zito, Garrincha, Didi, Nílton Santos, Gilmar? Os tempos explicam.

O que dizer do menino Pelé em lágrimas de adolescente?

Havia um país pronto para dar um salto equivalente de meio século em três ou quatro anos. A Bossa Nova, o Cinema Novo, o grande teatro, o Concretismo, a industrialização, a construção de Brasília. Havia o Brasil pronto para se libertar das amarras, levantar do berço esplêndido e caminhar altivo pelo pátio das grandes nações.

Tudo parecia que ia dar certo. Muita coisa ia ser feita. Era a hora de decolar. No meio do caminho, a ganância dos homens pôs o barco a pique, mas ele ainda não afundou.

Poucas vezes em toda a história os brasileiros foram tão felizes quanto em 29 de junho de 1958.

Choraram, gritaram, tomaram as ruas, trocaram abraços e beijos, tudo por conta da lira do delírio contada nos aparelhos de rádio por todo o país.

Ali, eles finalmente se viram como brasileiros de verdade. Por um dia, senhores do mundo.

Enfim, um Brasil.

@pauloandel

Uma foto perdida no tempo (por Flavio Jacobsen)

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Toda vez que penso no Brasil, o país que poderia ter sido, o país que foi e o que é, me vem à mente a imagem de Juscelino Kubitschek reunido no Brasília Palace Hotel em 1958. Animada comitiva, vinda de um DC3 do Rio, cercava o presidente e ouvia de um rádio transistorizado com antena esticada no último, a final da Copa do Mundo entre Suécia e Brasil.

O presidente bossa nova parece incomodado na foto, de braço em riste como pedisse para pararem a algazarra, enquanto todos de braços erguidos comemoravam um dos gols do timaço de Pelé, Garrincha e companhia. É provável que ruídos de ondas curtas atrapalhassem a transmissão e a atenção do atento e desconfiado – como sói ao bom mineiro – JK.

Há algo perdido naquela foto. A começar pelo autor, até hoje desconhecido. Pode ter sido o tio do cafezinho.

A partir daquele ano o Brasil seria vanguarda diferenciada em diversos campos. No cinema novo, na música bossanovista, na literatura dos concretos paulistas, na arquitetura de Niemeyer, nas artes, teatro de arena e a partir daquele jogo, também nos esportes. Seria campeão de basquete, tênis, boxe e atletismo anos seguidos. Nelson Rodrigues versou que finalmente perdemos naquela tarde em Estocolmo (manhã no Brasil) o malfadado “complexo de vira-latas”.

Aquele país, em que pese a infraestrutura ainda de dar pena, por incrível, era cortado por trens de norte a sul. Gigante exportador de café e predominantemente agrícola, havia ainda muito mais Jecas Tatus que Haroldos de Campos, por óbvio, ao longo do extenso território. No meu delírio, é possível dizer que o Brasil não era nenhum Pelé. Era, vá lá, um Zito. Segurava a bronca lá atrás, e dava conta do recado e suporte ao primeiro mundo, este na linha de frente. Tudo com muita elegância, a bem da verdade. Quem viu Zito jogar, ou como eu apenas ouviu falar, sabe a que me refiro.

Como anos depois viria a observar Tom Zé, de forma extremamente charmosa, em muito pouco tempo o país deixou a condição mais baixa do universo civilizado, o de fornecer matéria prima, para o mais elevado: provedor de cultura. Era o país do futuro. Que coisa.

Penso sempre naquela foto. E junto com a lembrança da imagem vem a pergunta inevitável: onde foi que erramos? Algumas respostas surgem de imediato. Sem a ingenuidade da juventude já sabemos todos que, por exemplo, foi no período JK que o desmonte dos trilhos começou. O transporte por trens talvez seja o elemento mais estratégico da
infraestrutura de um país. Isso pra citar um exemplo, bastante pertinente quando vemos a influência das grandes empreiteiras do cimento no universo político da nação. Perdemos o trem, fomos de busão. Daí o atraso, os senhores nos desculpem.

Depois de alguns anos de confusão generalizada, todos sabemos o que aconteceu. A festa acabou. Veio a ressaca pesada do grande carnaval, em que heróis e vilões se revezaram no meio de uma passarela imaginária, agora emitindo seus rancores via planalto central. Anos de chumbo e tudo o mais.

Há algo mais perdido naquela foto. Um país que é apaixonado pela ficção novelística, a que muitos creditam o advento da televisão, em ledo engano. O brasileiro consumia vorazmente folhetins impressos desde o século 19, e as novelas de rádio paravam o país. “O Direito de Nascer” deu briga de família. Vizinhos se reuniam para ouvir a radionovela, vovó me contava. Livros e enciclopédias eram grandes fontes de renda, vendidas de porta em porta a uma classe média que crescia a olhos vistos, junto com as cidades. O Brasil das ondas de rádio está perdido naquela foto. Depois entregue aos raios catódicos, a paixão folhetinesca apenas continuou.

No hedonismo que se seguiu em décadas seguintes, Pelé se tornou o homem mais conhecido do mundo. Em processo inverso e misterioso, o país a que ele pertence foi sendo esquecido. Isolado por ditadura, quem sabe. Por acabrunhamento ou interesse que não nos ocorre.

Mas malandro é malandro e mané é mané. Olha nós aqui outra vez!

Voltamos no final do século. E dá pra dizer que reentramos muito bem, armados de guitarras elétricas e tambores de maracatu, reforçados por Romário, Ronaldo, Bebeto, Ronaldinho e Rivaldo. Deu pro gasto e ainda sobrou um tanto pra cachaça. Adentramos os aguardados anos 2000 triunfantes. Estamos aí.

Meu delírio termina aqui. Há outro processo turbulento nos ameaçando para o limbo de um período importante da História novamente. É por isso que não consigo deixar de pensar que há algo mais perdido naquela foto. Pode ser no gesto do presidente pedindo calma… calma.

Flavio Jacobsen é escritor e compositor. Autor de Uns Contos no Bolso (Kottrer Editorial, 2015). Artista de rock, canta e toca guitarra na banda Gruvox.

O adeus de Orlando Abrunhosa (da Redação)

Um dos grandes fotógrafos do Brasil faleceu hoje: Orlando Abrunhosa.

Sobre ele, as imagens falam mais do que tudo.

ZICO NOVINHO

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Orlando Abrunhosa em entrevista a Mauro Ventura em O Globo: CLIQUE AQUI.

O documentário “Três no Tri”

Copa do México, 1970: Pelé faz o gol da virada contra a Tchecoslováquia, dando início à arrancada da seleção brasileira rumo ao tricampeonato. Orlando Abrunhosa imortalizou o feito na fotografia brasileira mais reproduzida mundo afora, mas esta não é a sua única façanha.

Direção e roteiro: Eduardo Souza Lima
Produção: Ailton Franco Jr.
Produção executiva: Anna Azevedo
Direção de produção: Daniela Santos
Fotografia e câmera: David Pacheco
Montagem: Eva Randolph
Som direto: Júlio Braga e Vampiro
Edição de som: Rodrigo Maia
Mixagem: Damião Lopes
Participações especiais: Evandro Teixeira e Walter Firmo

Prêmios:

Prêmio Edital RioFilme de Produção de Curta-metragem 2011
Troféu CINEfoot 2013 de Melhor Curta-Metragem
Mention d’Honneur da categoria Movies & Great Champions do 31º Milano International Ficts Fest

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