Ainda sobre a Taça de Prata

Eu estava no berço. Tinha dois anos de vida.

A decisão foi o acontecimento do fim do ano na Guanabara. Um dia de festa tricolor num país que vivia tempos trágicos.

Meu pai foi ao jogo. Eu torci de casa, mesmo sem saber. Já tinha uma camisa do Fluminense, uma camiseta de algodão com o escudo bem grandão, que cobria todo o peito, e os simples dizeres “Sou Fluzão”.

Dez anos depois, em 1980, o futebol já era uma rotina diária em minha vida. Num domingo quente como o de hoje, eu ia à padaria, depois passava pela banca de jornal, trazia tudo que meu pai pedia e depois ficava na fila para ler os cadernos de esportes. Isso certamente me ajudou como cronista. O Dia, O Globo, Jornal do Brasil, Jornal dos Sports, tudo. Mas como era em 1970?

Provavelmente meu pai é que foi à padaria, porque minha mãe não saía de perto de mim. Ele tinha 29 anos e deve ter ficado que nem um louco, sonhando em chegar logo ao Maracanã. Um jovem ainda, pai de família, com o irmão recém-exilado, com uma criança de colo, administrando duas lojas, lutando para vencer. E muito perto de ter uma alegria incomensurável, que era a de ver seu time campeão do Brasil.

Fico imaginando aquele Maracanã abarrotado. Longe de desrespeitar a garotada de agora, mas quem viu aquela praça com mais de 130 mil pessoas sabe o que estou falando.

O Fluminense venceu o campeonato com um empate com o Atlético Mineiro. Foi um sonoro campeão. Superou o Palmeiras de Ademir da Guia, o Santos de Pelé, o Cruzeiro de Tostão, o Botafogo de Paulo Cezar Caju, o São Paulo de Gerson e muito mais. Ganhou um dos títulos mais difíceis de sua história e o campeonato brasileiro mais difícil de todos os tempos.

Meu pai era calado. Não sei se foi sozinho ao jogo ou com algum amigo. Não sei se chorou, o que vi pouquíssimas vezes. Não sei se cantou. Eu só imagino as cenas que não vivi, mas tudo aquilo resultou em coisas que repercutem até hoje.

O primeiro jogador que vi na vida foi o Félix, num álbum de figurinhas da Copa de 1970. Eu devia ter perto de cinco anos. Meu pai adorava álbuns e fez vários. A gente os perdeu nas mudanças, é duro ser pobre. Mas a cena eu não esqueço: estava deitado na minha cama quando ele veio, me chamou e mostrou. Félix, Félix, nunca mais esqueci – isso tem mais de 47 anos e eu me lembro como se fosse agora.

Samarone, Galhardo, Marco Antônio, Oliveira. Didi. Denílson, o Rei Zulu. Flávio, Mickey, Lula. São todos nomes familiares para mim. Não precisei vê-los para adorá-los, saber como foram e são tão importantes para o Fluminense. Sei como eles deixaram meu pai feliz, e felicidade é algo tão raro que a gente precisa sempre valorizar. É um grãozinho de areia com o qual sonhamos sempre.

A volta do jogo? Ele deve ter abraçado minha mãe, ligado o rádio para ouvir a repercussão do título e planejar o próximo álbum de figurinhas.

Já comprei o pão hoje. A banca de jornais está fechada. O rádio está desligado. Há um enorme silêncio, exceto pelo ventilador que lembra uma turbina de avião. Então é ficar deitado, olhar para cima e se sentir em pleno voo.

Hoje não tem jogo. O Fluminense de agora é incerteza no campo e devastação fora dele, mas há cinquenta anos, meus amigos, o mundo era pequeno para as três cores da vitória, cores de um título supremo que sempre estará representado pelo V da vitória de Mickey, o artilheiro inesperado que supriu a ausência do esplêndido Flávio e levou o Flu a um de seus títulos mais arrebatadores.

Um dia, depois de tanto ouvir as histórias tricolores de meu pai, comecei a escrever as minhas, mas nunca deixei de lado o que aprendi e vivi. Tudo passou rápido demais. Quem me dera estar no berço outra vez com minha camiseta do Fluzão! Na impossibilidade, deixo um grande abraço a todos os tricolores vivos ou mortos que, naquele dia, no campo, na arquibancada, na geral e nos radinhos Brasil afora, ajudaram o Fluminense a se mostrar em seu real tamanho: gigantesco, gigantesco.

Viva os campeões brasileiros de 1970!

@pauloandel

Nascido em 1968, Paulo-Roberto Andel é autor de 30 livros, sendo 16 deles sobre o Fluminense. Formado em Estatística pela UERJ, é editor e cronista do Panorama Tricolor, cronista colaborador do Museu da Pelada e do Correio da Manhã. No Panorama, assinou mais de 1.000 colunas desde 2012. Por conta de seus esforços literários, foi declarado torcedor ilustre do clube em sessão solene do Conselho Deliberativo do Fluminense em 21/07/2014.