Uma breve história sobre futebol (por Paulo-Roberto Andel)

Há quem diga que o futebol é bobagem. Santa insensibilidade: se não fosse o futebol, o mundo seria muito pior porque, para centenas de milhões de pessoas, ele é a única chance de alegria em meio a um monte de ódio, opressão e covardia. Hoje à tarde, conversando com Raul, lembramos que o velho Maracanã era o único espaço de real convivência democrática da cidade entre ricos e pobres, abraçados nos gols e chorosos nas derrotas. Em muito menor escala, eu só consegui viver o mesmo no grupo de escoteiros: todos acampávamos com ou sem dinheiro, fazíamos vaquinha, apertávamos a comida, o ônibus mais barato. No grupo éramos uns setenta; no Maracanã, cem mil. Quantas vezes o futebol me salvou? Não sei dizer. Quando meu pai chegava derrotado e violento por causa da bebida, eu corria para o 434, ia para a geral e chorava vendo um jogo. Noutras vezes, eu ficava no corredor da arquibancada olhando a UERJ e sonhando em estudar lá. Noutras vezes eu ia porque era o único lugar em que, tão solitário, eu não me sentia sozinho. Foi assim muitas vezes. Sem o futebol, a depressão teria me vencido, eu teria executado o suicídio que iniciei e teria sido um desperdício, porque escrevi muitas coisas legais a seguir, o que eu não faria morto por motivos óbvios. O futebol me deu a ilusão de um monte de amigos juntos, caso da arquibancada; me deu sonhos em jogos e lances inesquecíveis; preparou meu espírito para saber encarar as derrotas. O futebol me deu muitos colegas, com quem interagi e trabalhei muitas vezes. Por exemplo, nesse domingo há 28 anos o meu time ganhou um dos maiores jogos de todos os tempos, com um gol de barriga. Naquele ano quase tudo deu errado pra mim, mas o campeonato valeu muito a pena. Muitos anos depois, foi o futebol que permitiu minha estreia em livro e, por gratidão, escrevi um monte de livros sobre o tema, vários ainda inéditos. Por causa do futebol vivi admirações, paixões e conheci minha esposa. Também conheci pessoas do Brasil inteiro, com quem converso sempre que posso – algumas colaboram com o meu site. O futebol só não me ofereceu mais abraços do que minha mãe. Você conhece ou segue um artista, acaba gostando mais dele quando é um entusiasta do futebol. Ele me faz esquecer as dores no corpo, a minha tragédia pessoal, a melancolia cotidiana. Por uma hora e meia, mesmo que o jogo não seja bom eu tenho meu pequenino momento de felicidade. Tanto faz se é uma partida importante ou esdrúxula – o jogo começa, eu volto a ter dez anos de idade e meu olhar persegue a bolinha na tela da televisão. Ah, se não fosse o futebol, como eu teria conversado com a Bibi Ferreira, o Gilberto Gil e a Letícia Spiller? E a Maria Bethânia? E o Italo Rossi? E como eu ia suportar o mundo agora, que me humilha todo dia enquanto sinto dores pelo corpo e choro por tanta gente humilhada feito eu? É domingo à noite, tudo parece perdido, tenho vontade de desistir mas penso na terça-feira, tudo pode ser diferente e surgir pelo menos uma luzinha no fim do túnel. Pode ser que eu não tenha um único amigo, pode ser que eu não consiga vender e está tudo perdido, mas a terça-feira me serve de esperança. Vou pensar no jogo, vou conversar com colegas para chegar logo o horário da partida. Agora é uma noite melancólica como todas de domingo, onde esperamos ótimas semanas que nunca, mas nunca chegam – ao menos para mim -, só que eu carrego comigo o futebol, a minha esmolinha, os meus botões que minha mãe comprou com tanto sacrifício, as histórias que vi e escrevi, as histórias que ainda preciso contar quando era garoto e, na Copacabana de orla escura, chutava a bola na areia com os colegas mesmo sem vê-la direito, nem o goleiro e o gol – assim como só nos resta viver, nos campos da praia só nos restava jogar, pouco importando se a bola iria para a direção correta, ou se um gomo da bola estivesse soltando. Aqui falo de quarenta ou quarenta e cinco anos atrás, que foram há um susto porque tudo é brevidade, mas a bola na praia, na vila, no playground do Gordinho e mesmo no Maracanã – meu pai me levou para ver não apenas o Fluminense, mas o America, o Bangu e até o Campo Grande, todos contra o Flamengo – eram tudo uma coisa só: um pequeno suspiro de felicidade.

@pauloandel

Uma rua sem nome (por Paulo-Roberto Andel)

Pode não ter sido o primeiro jogo que fui, mas é o primeiro jogo que me lembro de ter ido ao Maracanã. Foi em 1974, quando eu tinha cinco para seis anos de idade.

Eu não me lembro de nada da partida, mas do campo vazio quando o jogo acabou. Era noite, muito provavelmente de domingo.

Quando olhei o placar, tenho quase certeza de que foi um zero a zero. O Fluminense contra alguém, lógico.

Achei os degraus da arquibancada muito altos. Claro, eu era pequenininho, minhas pernas eram bem pequenas. Aí meu pai veio me dar a mão e desci para o túnel de acesso, bem escuro e estreito. Parecia uma aventura secreta por trinta segundos.

Então vinha a saída pelo corredor do Maracanã. Não era um jogo de muito público. Várias pessoas caminhavam na mesma direção que nós, outras vinham no sentido contrário. E um certo silêncio prevalecia dos dois lados, o que reforça minha impressão de empate.

Andávamos tranquilos, eu e meu pai de mãos dadas. Não me recordo de outro pai e filho por ali, não feito a gente. Éramos únicos.

Para mim, aquele corredor que levava à grande rampa de saída, imensa, gigantesca para mim, era como se fosse uma rua. Uma rua de futebol, com as pessoas indo e vindo depois de um jogo.

Depois da descida, havia carroças de cachorro quente com vários fregueses, e vendedores de laranja oferecendo uma promoção. Em frente ao portão do Maracanã, tinha uma grande estrutura de concreto, bem grande, com peças vazadas que me lembravam um palito plástico de picolé Chicabon.

E então pegávamos o trem para a Central e, de lá, o ônibus 154 para Copacabana, que nos deixava na porta de casa na rua Santa Clara.

Essa é uma lembrança de 1974, prestes a completar 50 anos. Infelizmente, meu pai não está mais aqui para me dar a mão e ninguém mais dará. Muito tempo se passou. O Maracanã agora é outro, super outro.

De toda forma, eu ainda procuro o túnel escuro e ínfimo, ainda espio a rua sem nome cheia de gente indo e vindo, todos ansiosos pelo próximo encontro, o próximo domingo no Maracanã, os altos degraus da arquibancada.

É que cinquenta anos não são nada diante do sonho de uma criança, descobrindo seu lugar preferido no mundo.

@pauloandel

Tiro de meta (por Paulo-Roberto Andel)

(publicado originalmente em 2002 na Usina de Letras)

Fiquei observando a televisão ligada de forma ocasional. Era um jogo de bola, desses de garotos pelos quais ninguém dá nada ainda e, quando ninguém espera, oferece jogadores para ainda manter viva a chama do nosso futebol, tão combalido nos dias atuais.

Partida num estádio do interior, transmitida pela rede pública, reprisada de madrugada, o jogo correndo enquanto paralelamente eu lia jornais.

Interrompi a leitura por um instante, fitei a tela e me deparei com um tiro de meta.

Era uma jogada qualquer?

Naquele momento, o único ser vivo na tela focada à grande distância era o goleiro, um solitário goleiro com a responsabilidade de reconduzir o jogo carente de torcedores, repórteres e outros participantes – imagem que permaneceu por muitos segundos, dado um bloqueio momentâneo na transmissão.

Eis que a tela da televisão me pareceu um grande quadro, uma monumental aquarela, com aquele solitário menino estático a observar a bola e pensar em como iria chutá-la, para onde e com que força, tudo cercado pelo silêncio do estádio vazio. Mais segundos, mais silêncio, mais solidão do goleiro na tela como se ninguém mais estivesse no estádio a apreciar sua intenção, exceto eu.

Quando se pensa em futebol, é certo que muitos imaginam de imediato o grande gol, a jogada mirabolante, o passe apurado, o domínio com categoria, o drama do pênalti. O tiro de meta, meus amigos, é um importante momento marginalizado: difícil a sua consecução terminar em algum dos lances anteriormente descritos. Entretanto, não sei se pela solidão a mais ou alegria de menos, pus-me a contemplar aquela imagem congelada como um princípio de esperança – era um tiro de meta, amigos.

Naquele chute, naquela cobrança, é possível identificar até um cotidiano de nossas vidas: é do tiro de meta, após uma interrupção, que o jogo recomeça. Ali tracei na memória uma relação com minha própria vida, machucada por infortúnios que deviam sair por uma imaginária linha de fundo, representados por uma bola.

A vida, ávida por si própria, voltaria após um breve intervalo a ser vivida, tão logo fosse trocada a bola por outra e a devida reposição pelo tiro de meta seria um recobrar de ânimo, um renascer das cinzas, um poente a abafar a tempestade – talvez seja este o significado da expressão popular “bola pra frente”, não vinda de um lançamento primoroso mas sim do desprezado e esquecido tiro de meta.

Talvez disso venha a razão do futebol ser tão apaixonante e cobiçado por gente de todo o mundo. No jogo, podemos encontrar relações diretas com nosso viver através da vida e morte: a derrota pelo gol sofrido e a alegria pelo tento marcado; a beleza da jogada articulada e a besteira da bola perdida; a pressão que não derrota através do chute que vai pela linha de fundo e o recomeçar pelo tiro de meta.

É preciso entender a força, o vigor e a esperança que um tiro de meta é capaz de mostrar. É preciso notar a perspectiva que um tiro de meta pode trazer a um jogo de bola, tão preciso quanto um recomeçar na vida depois de uma derrota circunstancial.

Num súbito, a imagem voltou à tela. O goleiro continuou solitário na TV, desferiu o chute e a bola foi para o meio de campo, com vários jovens a disputá-la numa outra imagem. O estádio continuava vazio e é possível que eu fosse um dos poucos telespectadores na reprise.

Depois do revés, o jogo recomeçou tal qual minha vida faz e fará após um desânimo breve, marcante porém passageiro. A vida continua, a partida também.

O botão (por Paulo-Roberto Andel)

Perto da cabeceira da cama, encontro um botão do Flu.

Basta um segundo e o futebol dá mil voltas na minha cabeça.

O botão tem vida própria, muito além da mesa de jogo. Ele te leva ao Maracanã, a São Januário, ao Andaraí.

Um gol de Robertinho, de Parraro, de Cano ou até um inédito de Alexandre Jesus.

O botão navega pela grande nuvem de pó de arroz na arquibancada. Abre um bandeirão gigantesco. Vira um super-herói como Ézio, ou viaja 60 anos no tempo para incorporar Waldo, 80 para Romeu Pelicciari ou ainda um século para reviver Welfare, o tanque tricolor.

O sonho que um botão proporciona pode virar cena de cinema dos aspirantes, com um golaço de ninguém menos do que Paulo Cezar Saraceni, fera tricolor que deixou os gramados para mergulhar em câmeras e ação. E torcendo pelo amigo, Mário Carneiro testemunharia o grande gol da geral.

Um botão do Fluminense para atravessar o tempo, recordar histórias maravilhosas e outras terríveis, porque a vida é imperfeita.

Ah, o botão: ele pode ser Telê Santana, Brant, Jair Marinho ou Doval. Pode ser Preguinho, Pinheiro ou Cléber, pode ser Vander Luiz ou Ângelo.

O botão, em campo ou sob simples admiração, é uma vida. Ele é o futebol em riste, a alegria, a saudade.

A saudade.

Um Kichute há 2.200 domingos (por Paulo-Roberto Andel)

(Lembrança de uma noite de 1979)

Domingo, fim de noite, meus pais estão dormindo e estou vendo a TV com o som bem baixinho para não acordá-los. Estou esperando os Gols do Fantástico para dormir.

Tenho um plano grandioso para esta semana, que vai exigir um sacrifício. Se eu não comprar nenhum botão, nenhum pacote de Futebol Cards e economizar o dinheiro dos lanches de terça a sexta-feira, finalmente vou poder comprar meu Kichute. Imagina poder jogar com ele já no fim de semana na vila? É um sonho.

Há muito tempo eu vejo o Kichute na vitrine da Casa Orensana, que fica aqui perto, aos pés da Ladeira dos Tabajaras. Ele é muito bonito. Só de colocar nos pés, você se sente um jogador de futebol de verdade. Eu não coloquei ainda, mas tenho certeza disso. A gente sente. Mal vejo a hora de estrear. Quando vejo a propaganda na TV ou nas revistas, me sinto o Edinho em campo, ou o Miranda. Ou um becão que nem Abel ou Rondinelli.

Quando você olha o Kichute de lado na vitrine, ele tem as travas iguaizinhas às da chuteira, e é todo preto também. Já pensou se tivesse uma mágica em que, ao calçar o Kichute você vá parar no túnel do vestiário do Maracanã, pronto para subir a escada e ver a multidão soltando fogos, enquanto chega ao gramado? Meu coração bate mais forte só de pensar nisso.

Eu sei que não vai ser fácil ficar uma semana sem lanche nem Futebol Cards, também sem nenhum reforço para o meu time de botão, mas eu não posso perder essa oportunidade. Jogar de Kichute é igual a aparecer nos gols do Fantástico ou na reprise da TVE, ou ainda no Bola na Mesa da Bandeirantes – Paulo Stein, Márcio Guedes, Alberto Léo e José Roberto Tedesco, está certinho?

E se o Kichute me fizer jogar no Maracanã e fazer um gol? Meu Deus, não sei o que dizer. Chega logo, sexta-feira, para eu comprar na Orensana. É a hora de virar um craque! Meu pai vai ficar bem orgulhoso de mim.

@pauloandel