O jogo que nunca termina (por Paulo-Roberto Andel)

Vem aí mais um Fla x Flu. Na verdade dois, pela decisão do Campeonato Carioca de 2023, nos próximos dois finais de semana.

Para o maior cronista do futebol brasileiro em todos os tempos, Nelson Rodrigues, o grande clássico inventou a multidão quando o Rio de Janeiro era uma cidade triste, de ruas vazias. Assim foi em muitos jogos eletrizantes na rua Paissandu e no Estádio das Laranjeiras, depois na Gávea e finalmente no Maracanã, seu habitat natural desde 1950. E como o Fla x Flu envolve até as relações familiares, Nelson Rodrigues tinha um grande cronista rival dentro da própria casa: Mário Filho.

Muita coisa mudou, para não dizer tudo: os próprios Rio de Janeiro e Maracanã, hoje muito diferentes de outrora. O Fla x Flu, que facilmente levava 140 ou 120 mil pessoas às arquibancadas, cadeiras e geral, hoje não passa de 70 mil até porque o estádio não disponibiliza todos os ingressos. Mesmo assim, estará lotado pelo contraste das cores e gritos. Todos os bares, biroscas e congêneres estarão cheios de olhinhos atentos à TV, suspirando por jogadas que, de alguma forma, celebrem o futebol de Romeu Pelicciari, Dida, Waldo, Silva, Rivellino, Zico, Ézio e tantas outras feras que escreveram a história desse clássico imortal, único no mundo pela quantidade de gente que já levou ao campo e também porque é o único nascido de uma cisão no ventre: o futebol rubro-negro nasceu de uma dissidência dentro da casa tricolor, como se sabe.

Os homens de 55 anos carregam para sempre os Fla x Flus abarrotados no fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Só nesse pequeno intervalo, jogos antológicos tiveram a assinatura eterna de nomes como Cristóvão, Tita, Paulo Goulart, Luiz Fumanchu, Lico, Nunes (para os dois lados) e, claro, Assis, dentre outros. Já os de 65 primaveras vão se lembrar de Félix, Samarone, Paulo Henrique, Fio Maravilha, Flávio Minuano e grande elenco. Os nonagenários viram tudo que aconteceu no grande Fla x Flu de 1941. E quem já não está mais aqui viu o clássico nascer em 1912. Mas será que não está? Quando o Fla x Flu acontece no Maracanã cheio, parece que tem um milhão de pessoas presentes, entre gente viva e morta, gente que persegue o combate entre as duas camisas para sempre. Parece que todo mundo abraça o Fla x Flu pela eternidade.

Nos últimos anos, Pedro e Gabigol, Cano e até o incrivelmente subestimado John Kennedy têm dado as cartas. A partir do próximo sábado, começará a ser escrito mais um capítulo de um livro infinito, o do jogo que nunca termina. Homens, mulheres e crianças vão gritar, sofrer, rir, chorar, sonhar e registrar momentos que serão carregados para sempre. Seja ao vivo no calor infernal do Maracanã, num restaurante sofisticado com telão ou numa sala de plantão profissional, o Fla x Flu prevalecerá. Pode ser também no radinho humílimo de um trabalhador à portaria ou num trem. Quem sabe numa mesa de botão Estrelão e seus craques de acrílico, ou numa mesa de totó num boteco metropolitano? Ou no futebol de preguinho?

As cores, os gritos, as bandeiras, os contrastes e a velha cisão de 111 anos batem seus tambores como nunca. É Fla x Flu, decisão, literatura e dramaturgia.

O tricolor e o flamenguista andam lado a lado, feito o leão e o tigre numa calçada de Nova York no texto inconfundível de Tom Wolfe. É toda a eternidade que parece ter sido escrita no frescor de ontem.

CRB, Operário, as letrinhas e o goleiro Quebrangulo (por Paulo-Roberto Andel)

Dez para as quatro da manhã. Acordo e percebo que não desliguei a TV. A grama não deixa dúvidas: tem futebol no bom e velho videotape. A maravilhosa Copa do Brasil, o campeonato que mais gosto de ver. Muita coisa no futebol piorou com o tempo, mas se tem algo bom hoje em dia é poder ver todos os times, seja pela TV ou internet.

De cara, reconheço o CRB e levo algum tempinho para identificar o Operário de Mato Grosso do Sul. O jogo está corrido, parece disputado. Aí é que olho para o alto esquerdo da tela e descubro que o alvirrubro alagoano está disparando uma goleada: CRB 5 a 0. Casa cheia.

O comentarista acaba falando do grande rival nas Alagoas, o CSA, que está de fora da fase final do certame local. Alagoas, a terra do time das letrinhas: CRB, CSA, CSE, ASA. Como era bom ler o Tabelão da revista Placar com as súmulas dos jogos e até os escudinhos para os jogos de botão.

Falando em CSE, vem um nome inesquecível da minha juventude: o goleiro Quebrangulo, que chegou a ganhar prêmio no Fantástico por sua atuação, e que infelizmente morreu afogado. Além dos campos, houve também uma situação heróica de Quebrangulo salvando pessoas, não me lembro ao certo se foi na ocasião da morte ou antes. Bom, em sua cidade local existe o garboso Estádio Goleiro Quebrangulo.

O CRB, alvirrubro, joga com números pretos na camisa listrada. De onde será que vem o preto? Antigamente o Atlético Mineiro jogava com números vermelhos em sua camisa alvinegra. Noutras ocasiões, trocava o vermelho pelo amarelo. E falando em Atlético, minha cabeça voa para o Paranaense, que agora é Athletico e tem um escudo diferente do de todo mundo. Antes, era redondinho e antes do antes era igualzinho ao do Flamengo. Aliás, a camisa do Athletico também era igual à do Fla, com as listras horizontais, que depois viraram verticais.

E o Operário? Sempre será lembrado pela brilhante campanha do Brasileiro de 1977, quando chegou às semifinais e tinha no gol o veterano Manga (que depois jogaria pelo Grêmio, deixando seus fãs colorados ensandecidas), além de Roberto César, que depois faria história no Cruzeiro.

Acaba o VT do CRB, entra Ituano versus Ceará. Num estalar de dedos, vem o momento mais nobre do futebol: a disputa de vagas em cobranças de pênaltis. Tirando quando é com meu time, é bom demais. Impossível não ter emoção e, em muitos casos, vêm as surpresas. O futebol é cinema em sua essência mas, numa disputa de pênaltis, ele é teatro puríssimo. Ribalta, drama e emoção. Deu Ituano, o pessoal comemorou paca.

Atlético Goianiense e Volta Redonda. Eu digo que é bem estranho ver o querido Voltaço todo de branco, apenas com os detalhes aurinegros na beirinha da manga. Tudo bem. Essa eu já sabia: deu de novo no fascinante ballet da morte nos pênaltis. E deu Volta Redonda. Junto com o Nova Iguaçu, pela primeira vez duas equipes do segundo escalão econômico do Rio chegam à terceira fase da Copa do Brasil. Muito legal. Ano passado a Portuguesa fez bonito.

Pego um copo de refresco de pêssego, tomo os remédios para pressão, deito e só então me dou conta de que desabei de sono após Vasco e ABC. Numa noite ingrata para os vascaínos, o time potiguar – e também das letrinhas – aprontou e tirou o Cruz-maltino da Copa do Brasil em pleno São Januário, também no drama dos pênaltis. Meu amigo Catalano xingou o time, alguns jogadores e o árbitro, por motivo justo. Certas coisas não mudam nunca.

Hora de mais um cochilo antes do trabalho. Cinco e vinte da manhã. A bola ainda pega fogo no VT de Volta versus Goianiense. Pouco importa o jogo ou os atletas individualmente em si: fato é que a Copa do Brasil é instigante demais, maneira demais. Daqui a pouco o Catalano vai acordar e xingar tudo de novo, mas já estaremos ligadíssimos no Carioca e loucos para nos encontrarmos na final Vasco e Fluminense. Assim seja.

Onde quer que esteja, que Quebrangulo esteja em paz.

@p.r.andel