Brasil 2 x 3 Itália, 40 anos depois (por Paulo-Roberto Andel)

Tudo ainda está muito vivo em minha memória. Eu tinha treze anos e o mundo pela frente. Desde 1981 o mundo se curvava ao talento da Seleção Brasileira, lotada de craques e com atuações inesquecíveis.

Acordei cedo e fiquei na expectativa do jogo. Pela primeira vez eu não iria ver uma partida da Copa em casa. Meu amigo Ivan, também meu vizinho de prédio, me convidou para ver em sua casa. Éramos nós dois mais a irmã dele, a prima e a mãe.

Começou tenso, porque a Itália logo marcou um gol numa cabeçada de Paolo Rossi, mas o Brasil também deu o troco com um jogadaço de Sócrates, o Doutor, a fera cerebral do Brasil com seus toques geniais de primeira e de calcanhar. Gritamos no empate mas estávamos tensos. Por outro lado, o Brasil tinha acabado de dar um baile na poderosa Argentina, o que aumentava nossa confiança.

Houve um branco, a Itália se aproveitou e fez 2 a 1. Paolo Rossi outra vez. Ficamos em silêncio, mas havia muito tempo ainda. Tínhamos a melhor seleção do mundo, precisávamos ter calma e confiança.

No intervalo comemos biscoito e tomamos Coca-Cola. A cada mordida e gole, dava para sentir certa apreensão. O Brasil não perdia um jogo há um ano e meio, era o favorito, brigava de igual para igual. A gente ia empatar o jogo.

Atacávamos, mas o gol não saía. Eles respondiam, tínhamos medo. Acompanhamos tudo em silêncio frente à pequena televisão. E foi aí que Falcão puxou a bola na frente da área e marcou um golaço! Explodimos. Nosso silêncio desabou em meio à comemoração. Os fogos explodiram na vizinhança. Copacabana inteira não gritou pelo gol, mas deu um urro que misturava alívio, dor e esperança.

Rimos e nos abraçamos. O Brasil se encaminhava para as semifinais da Copa da Espanha.

O problema é que o roteiro seria totalmente diferente das nossas expectativas. Veio um escanteio. Uma bola de longe chutada torta e – como assim? – acabou em gol. Gol. O terceiro gol. Gol da Itália. Paolo Rossi de novo, logo ele que tinha o nome parecido com o meu, me dando um castigo daqueles.

Da saída do meio de campo até o último apito de Abraham Klein, a gente só fez ruídos para respirar. Sabíamos o que nos esperava. A janela oferecia um silêncio de cinco mil cemitérios numa segunda-feira à noite. Ficamos tão congelados que nem pulamos quando Zoff fez grande defesa em cabeçada de Oscar, nem quando a Itália marcou o quarto gol, que acabou anulado.

Quando o jogo acabou, tive a reação que uma criança teria num dia de feriado: chamei o Ivan para irmos jogar bola na Lagoa. Ele topou. Combinamos de nos encontrar na rua em dez minutos. Então me despedi da prima, da irmã e da mãe, todas muito silenciosas, e fui rapidamente em casa, onde o silêncio de meus pais era também profundo. E depois de tantos silêncios, entendi que a mais profunda das tristezas nem sempre vem com sons.

Pensando na casa do meu amigo e na minha, aí chorei sozinho no elevador Atlas branco para dez passageiros. Os oito andares pareciam quinhentos. Me recompus, estava sozinho, ninguém me notou na portaria. Logo encontrei o Ivan e fomos chamar mais amigos para o futebol na casa de cada um – os telefones eram raros. Sozinho, pensei: perdemos 1982 mas vamos ganhar 1986. Sonho de menino.

Juntamos uma turma e fomos para a Lagoa a pé. A rua estava deserta. Não havia carros nem ônibus. Não havia pedestres. Nas portarias, não se via os porteiros. Éramos um grupo de garotos atravessando uma Copacabana fantasma, como se tivesse sido abandonada por seu povo. Descemos a Tonelero, atravessamos o túnel, seguimos pela Pompeu Loureiro e tudo era o silêncio de desolação, mas a gente carregava para sempre o amor pelo futebol.

Quarenta anos depois, eu continuo perseguindo o futebol. Demorou, mas vi o Brasil ganhar duas Copas do Mundo. Vi milhares de jogos e dezenas de milhares de jogadores. O futebol ainda é muito importante na minha vida, é uma presença diária. Mas o que penso daquela tarde de quarenta anos atrás é que, de algum jeito, aquilo mudou o jogo que tanto amo e a mim mesmo para sempre.

O futebol ensina muitas coisas. Não se pode vencer todas. Nem sempre o melhor vence. Nem sempre o melhor é tão melhor. Às vezes, o pior é muito melhor do que podemos imaginar. A Itália naquele dia foi melhor e depois se tornou uma merecida campeã. O Brasil perdeu, mas o sonho daquela seleção que encantou o mundo por um ano e meio foi tão forte que, hoje, quarenta anos depois, seu desenho de beleza e poesia ainda está entre nós. O Brasil de 1982, a Holanda de 1974 e a Hungria de 1954 são provas vivas de que há seleções condenadas à eternidade mesmo sem título.

Assim, volto ao velho elevador Atlas e me sinto livre para o choro, o mesmo dos meus treze anos.

@pauloandel

Eu, redonda

Há trinta e oito anos vivo em berço esplêndido e profunda solidão. Numa breve espiada, posso ver o esplendor da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde vim parar contra a vontade mas cumprindo meu destino. Estou só, absolutamente só.

Tudo começou num dia que prometia ser o mais feliz da história do Brasil, mas não deu certo. As ruas eram cheias de bandeirinhas coloridas, o asfalto era pintado de verde e amarelo, Pachecão para todo lado. Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior; Cerezo, Sócrates e Zico; Falcão, Serginho e Éder. Onde poderia ter alguma falha?

O país parou para ver Brasil e Itália pela Copa de 1982 e não é difícil imaginar que, em 100 jogos, o nosso timaço venceria o timaço deles em 99. Mas como 99 não é 100, perto da hora do almoço a Seleção viveu uma espécie de nova final de 1950, e Paolo Rossi se transformou em dos maiores personagens de todas as Copas do Mundo. Quando o jogo acabou, Copacabana – o bairro mais barulhento da Terra – era um silêncio de dois mil cemitérios. A Itália ganhou o jogo dos jogos por 3 a 2, primeiro passo rumo ao tricampeonato mundial que lhe pertenceria em breve.

Os garotos, meus amigos, resolveram se reunir e jogar bola numa das quadras da Lagoa. Que remédio seria melhor ali do que uma boa pelada? Não havia telefone, uns foram na casa dos outros e logo éramos sete. Lembro que fizemos uma verdadeira procissão solitária do meio de Copacabana até o Corte do Cantagalo, quando então surgiram alguns carros. Antes disso, parecia que havíamos cruzado um deserto formado por prédios abandonados: não havia uma pessoa às janelas, nem nas calçadas, nada. Os porteiros desapareceram. Bancas de jornais, padarias, supermercados e botequins fechados. Ninguém ligando nos orelhões. O asfalto completamente vazio. Por alguma razão eu preferia não ter ido, mas não tive escolha: o futebol é minha sina. Nem todo mundo só faz o que quer.

Tivemos a exata noção da tragédia nacional quando chegamos aos campos da Lagoa. Normalmente abarrotados e com uma fila de fora, não hospedavam uma alma viva sequer. Não tinha a carrocinha de Kibon por perto, nem sinal do moço que vendia tubos de bolinha de sabão para as crianças. Alguma coisa nos fazia crer que, naquela tarde, éramos todos órfãos. Particularmente, eu me senti uma verdadeira estrela solitária, embora contasse com a simpatia de todos os amigos presentes.

Entramos na quadra, sortearam os times e me posicionei para o jogo. Começou. A quadra era só nossa. A temperatura era agradável. O Brasil havia perdido a maior partida de sua história, mas estávamos na Lagoa para manter a chama acesa dos nossos dias.

Um chute, uma dividida, canela contra canela. Fogo contra fogo. Corríamos para animar o jogo e desarmar a tristeza de nossas vidas. Tudo ia bem até perto dos vinte minutos, quando houve uma disputa perto da área. Marco Antônio, meu velho amigo que tinha uma verdadeira patada atômica nos pés, acabou me acertando em cheio, no peito. Uma bomba! E a nossa pelada acabou exatamente ali.

Poucos segundos depois, ainda sem recobrar os sentidos, o que me lembro é de ver meus amigos desesperados, tentando me acudir enquanto nos afastávamos involuntariamente. Alguém tentou me puxar, o outro chorava, alguém resmungava mas não teve jeito. Sofri um golpe fatal. Não morri, mas perdi meus amigos para sempre e isso me faz sofrer, a minha carreira foi encerrada também. Nunca mais participei de um jogo. Nunca mais voltei a ver meus amigos. Eles bem que tentaram me acudir, mas foram derrotados pela Lagoa Rodrigo de Freitas, e reconheço que mergulhar nela seria arriscado demais. Ainda tenho na memória as imagens deles indo embora de volta ao Corte do Cantagalo, cabisbaixos, chorosos mesmo.

Desde então, a minha vida tem sido ouvir ao longe outros garotos gritando e brincando, às vezes rindo, às vezes brigando também. Há dias de silêncio e outros de muito barulho, geralmente nos fins de semana. Muitos gols, vitórias e derrotas, ídolos e vilões, para tudo se desfazer e se refazer. Ultimamente a pandemia espantou todos os jogadores. Torço para que voltem logo, me alegra. O que me dói mesmo é não poder mais participar da festa do futebol, de brincar, de ser a estrela do jogo.

No meio da Lagoa Rodrigo de Freitas, em permanente flutuar, passo meus dias e noites. Ninguém me percebe, vivo entre braçadas imaginárias e o vaivém das pequeninas ondas. Tal como disse lá em cima, vivo em berço esplêndido mas também numa desilusão. Tudo o que eu queria era voltar ao jogo. Onde foram parar meus amigos? Será que estão todos vivos, com saúde? Espero que sim.

Não sou de ferro, mas de borracha e por isso continuo aqui. E penso naquele dia, penso nos meus amigos. Penso no dia em que o Brasil era todo nosso, até que Paolo Rossi foi nosso vilão. Nos dias de sol e de chuva eu penso naquele jogo, naquela tragédia inesquecível. Eu sei o que é o futebol e o que é a solidão, mas ainda sonho: imagine se alguém passa de barco e me resgata? Voltar à quadra seria renascer. Mas, pensando bem, parafraseando Frank Sinatra, para quem teve uma vida como a minha, basta uma única vez.

@pauloandel

(Baseado em fatos reais e livremente inspirado em “Das memórias de uma trave de futebol em 1955”, de Sergio Sant’anna)

Ainda sobre 1982

Na era do caos pelo Covid19, as reprises são abundantes nos canais esportivos. Na semana passada, com a campanha do Brasil na Copa de 1982, vieram à tona enormes discussões sobre o que seria a verdade do time de Telê Santana no Mundial da Espanha. Para muitos, um engodo. Para outros, abaixo do esperado. Para alguns, tudo muito discutível, mesmo que seja um dos times mais respeitados da história das Copas do Mundo, ao lado de outras admiráveis não campeãs como a Hungria de 1954 e a Holanda 1974/78.

Importante pontuar que as retransmissões foram feitas sem as análises e narrações originais, que dariam muito do clima da época, mas há muito além disso.

Primeiro: aquela foi a última vez em que a Seleção Brasileira era realmente popular. Praticamente todos os seus jogadores atuavam no Brasil. Os campeonatos regionais e o brasileiro reuniam com facilidade públicos de 50, 80 ou 100 mil pessoas. Era um time identificado com seu povo.

Segundo: Telê Santana vai para a Seleção Brasileira depois que o Palmeiras, time que treinava à época, massacrou o poderoso Flamengo nas quartas de final de 1979 em pleno Maracanã numa atuação arrebatadora. Ele se torna o treinador exclusivo e a Seleção é chamada de “permanente”, passando a se apresentar e jogar mensalmente. Em pouco tempo Telê resgata a paixão pelo futebol depois do fiasco da Copa América de 1979. Entre 1980 e 1982 a Seleção faz grandes partidas, dá exibições e chega à Espanha como a favorita ao título. Naquele período, o Brasil sofreu apenas duas derrotas: uma para a URSS, no começo do trabalho, e outra para o Uruguai, na final do Mundialito de 1981, torneio realizado naquele país em comemoração do cinquentenário da primeira Copa do Mundo (com um ano de atraso).

Terceiro: a credibilidade da Seleção tinha fundamento. Em 1981, o Brasil fez uma excursão à Europa e bateu três potências: Inglaterra (1 a 0), Alemanha (2 a 1) e França (3 a 1). Aliás, na primeira Era Telê o Brasil venceu a Alemanha, que seria vice-campeã mundial, por três vezes, uma delas por 4 a 1. O time era cantado e decantado por toda a imprensa esportiva mundial, sem exceções. E a base do time vinha de timaços como São Paulo, Atlético e Flamengo.

Tudo isso gerou uma enorme expectativa que na Espanha não se confirmou. Há muitos motivos mas, descontando-se a estreia contra a URSS, sempre complicada e nervosa, a Seleção passou com muita facilidade pelos seus três adversários a seguir. Se Escócia e Nova Zelândia eram fácies de bater, o mesmo não se pode dizer da Argentina, que sempre é um osso duríssimo de roer. A vitória por 3 a 1 foi inconteste. Quatro vitórias em quatro jogos, ainda que sem o brilho de quem costumava oferecer shows – mas todos sabemos que, na Copa, é diferente. Com seis gols nas duas primeiras partidas, o Brasil superou a estatística empacada desde 1954.

O jogo contra a Itália era muito perigoso, mas muitos italianos reconheciam a superioridade brasileira e a vantagem do empate para os então tricampeões mundiais. Só que a Itália jogou como nunca, esteve à frente do marcador em boa parte do jogo e, no fim, conseguiu sua vitória em uma jogada até inesperada (o peteleco de Tardelli se converter num passe para a finalização qualificada de Paolo Rossi). Os italianos foram melhores e souberam alcançar o resultado. O timaço brasileiro, com exceção de bons momentos de Sócrates e Falcão (por sinal, autores dos gols), fez uma de suas piores partidas desde que o trabalho iniciara em 1980.

Por muito tempo, certa empáfia atribuiu aos italianos a pecha de “zebra”. Ledo engano: um time com Zoff, Scirea, Cabrini, Tardelli, Antognioni, Altobelli e Paolo Rossi jamais poderia ser uma zebra. Fez uma primeira fase sem vitórias, mas mostrou força ao derrotar os argentinos. E contra o Brasil arrancou para o título merecido.

Desde então, nenhuma outra derrota brasileira numa Copa do Mundo deixou o país tão triste quanto essa do Sarriá. A relação mudou para sempre. O Brasil fechou as portas por 24 horas. Não foi a derrota em um jogo, mas a de um encanto regular do futebol brasileiro por mais de dois anos. Muito mais do que a retransmissão de uma partida onde tudo deu errado contra um grande adversário. E custou caro ao futebol mundial, com a obsessão pelo chamado futebol-força.

Pelo menos, a reprise de Brasil 2 x 3 Itália serve para tirar de vez a culpa exclusiva de Serginho pela eliminação. Ele não foi bem, mas definitivamente não deveria ter sido o bode expiatório. Waldir Peres, que falhou contra a URSS, mostrou muita segurança no resto da competição e não teve culpa nos gols. Feras como Éder e Zico estiveram apagadas. Edinho e Roberto eram dois jogadoraços, mas é difícil cravar que resolveriam sozinhos a parada contra os italianos. É certo: Luizinho, um craque, jogou mal a Copa. Leandro e Júnior, craques, cederam generosos espaços de contra-ataque. A Seleção na Espanha jamais foi a mesma que havia encantado o mundo nos dois anos anteriores, mas sua imagem anterior era tão poderosa que prevaleceu.

Os campeões de 1994 e 2002 realizaram partidas até piores do que os derrotados na Espanha, mas a vitória final apaga os erros. Não é preciso tirar-lhes o brilho para elogiar a Era Telê na CBF. Tivemos brilho também em 1938 e 1950, tínhamos craques em 1966 mas o fracasso foi grande. A Seleção de 1982 mantém o respeito porque foi muito vista em seu auge ao vivo e na TV.

Ao ser recebido para a coletiva após a derrota para a Itália, Telê Santana foi aplaudido de pé por mais de duzentos jornalistas. Se isso não tiver significado nada, talvez os torcedores do São Paulo em 1992/1993 possam explicar melhor.

@pauloandel