Toda vez que penso no Brasil, o país que poderia ter sido, o país que foi e o que é, me vem à mente a imagem de Juscelino Kubitschek reunido no Brasília Palace Hotel em 1958. Animada comitiva, vinda de um DC3 do Rio, cercava o presidente e ouvia de um rádio transistorizado com antena esticada no último, a final da Copa do Mundo entre Suécia e Brasil.
O presidente bossa nova parece incomodado na foto, de braço em riste como pedisse para pararem a algazarra, enquanto todos de braços erguidos comemoravam um dos gols do timaço de Pelé, Garrincha e companhia. É provável que ruídos de ondas curtas atrapalhassem a transmissão e a atenção do atento e desconfiado – como sói ao bom mineiro – JK.
Há algo perdido naquela foto. A começar pelo autor, até hoje desconhecido. Pode ter sido o tio do cafezinho.
A partir daquele ano o Brasil seria vanguarda diferenciada em diversos campos. No cinema novo, na música bossanovista, na literatura dos concretos paulistas, na arquitetura de Niemeyer, nas artes, teatro de arena e a partir daquele jogo, também nos esportes. Seria campeão de basquete, tênis, boxe e atletismo anos seguidos. Nelson Rodrigues versou que finalmente perdemos naquela tarde em Estocolmo (manhã no Brasil) o malfadado “complexo de vira-latas”.
Aquele país, em que pese a infraestrutura ainda de dar pena, por incrível, era cortado por trens de norte a sul. Gigante exportador de café e predominantemente agrícola, havia ainda muito mais Jecas Tatus que Haroldos de Campos, por óbvio, ao longo do extenso território. No meu delírio, é possível dizer que o Brasil não era nenhum Pelé. Era, vá lá, um Zito. Segurava a bronca lá atrás, e dava conta do recado e suporte ao primeiro mundo, este na linha de frente. Tudo com muita elegância, a bem da verdade. Quem viu Zito jogar, ou como eu apenas ouviu falar, sabe a que me refiro.
Como anos depois viria a observar Tom Zé, de forma extremamente charmosa, em muito pouco tempo o país deixou a condição mais baixa do universo civilizado, o de fornecer matéria prima, para o mais elevado: provedor de cultura. Era o país do futuro. Que coisa.
Penso sempre naquela foto. E junto com a lembrança da imagem vem a pergunta inevitável: onde foi que erramos? Algumas respostas surgem de imediato. Sem a ingenuidade da juventude já sabemos todos que, por exemplo, foi no período JK que o desmonte dos trilhos começou. O transporte por trens talvez seja o elemento mais estratégico da
infraestrutura de um país. Isso pra citar um exemplo, bastante pertinente quando vemos a influência das grandes empreiteiras do cimento no universo político da nação. Perdemos o trem, fomos de busão. Daí o atraso, os senhores nos desculpem.
Depois de alguns anos de confusão generalizada, todos sabemos o que aconteceu. A festa acabou. Veio a ressaca pesada do grande carnaval, em que heróis e vilões se revezaram no meio de uma passarela imaginária, agora emitindo seus rancores via planalto central. Anos de chumbo e tudo o mais.
Há algo mais perdido naquela foto. Um país que é apaixonado pela ficção novelística, a que muitos creditam o advento da televisão, em ledo engano. O brasileiro consumia vorazmente folhetins impressos desde o século 19, e as novelas de rádio paravam o país. “O Direito de Nascer” deu briga de família. Vizinhos se reuniam para ouvir a radionovela, vovó me contava. Livros e enciclopédias eram grandes fontes de renda, vendidas de porta em porta a uma classe média que crescia a olhos vistos, junto com as cidades. O Brasil das ondas de rádio está perdido naquela foto. Depois entregue aos raios catódicos, a paixão folhetinesca apenas continuou.
No hedonismo que se seguiu em décadas seguintes, Pelé se tornou o homem mais conhecido do mundo. Em processo inverso e misterioso, o país a que ele pertence foi sendo esquecido. Isolado por ditadura, quem sabe. Por acabrunhamento ou interesse que não nos ocorre.
Mas malandro é malandro e mané é mané. Olha nós aqui outra vez!
Voltamos no final do século. E dá pra dizer que reentramos muito bem, armados de guitarras elétricas e tambores de maracatu, reforçados por Romário, Ronaldo, Bebeto, Ronaldinho e Rivaldo. Deu pro gasto e ainda sobrou um tanto pra cachaça. Adentramos os aguardados anos 2000 triunfantes. Estamos aí.
Meu delírio termina aqui. Há outro processo turbulento nos ameaçando para o limbo de um período importante da História novamente. É por isso que não consigo deixar de pensar que há algo mais perdido naquela foto. Pode ser no gesto do presidente pedindo calma… calma.
Flavio Jacobsen é escritor e compositor. Autor de Uns Contos no Bolso (Kottrer Editorial, 2015). Artista de rock, canta e toca guitarra na banda Gruvox.
Mito bom!!! Uma ”breve” aula de HISTÓRIA…!!!
Show de artigo. Parabéns.
Que texto! Nossa história é tão marcada por picos de euforia e muito de melancolia.