Algumas palavras sobre Pelé (por Paulo-Roberto Andel)

O ano está acabando, o Natal está aí. No hospital, Pelé joga a partida mais difícil de sua longa e vitoriosa vida.

Como é sabido publicamente, seu estado de saúde piorou e o Rei está à base de medicação paliativa. Em português direto e reto, o câncer é incurável, já se alastrou e não há nada a fazer.

Já li, escrevi e debati muito sobre Pelé. Fui chamado de alienado por conta da questão de sua filha Sandra, até hoje sem a devida luz pública. Novamente alienado porque Pelé não teve posições combativas à ditadura no Brasil, nem se colocou de maneira antirracista.

Queiram desculpar. Nada tenho de alienado. Nem aqui, nem na China.

Sobre a questão de Sandra, filha de Pelé, não me cabe julgar nem apedrejar, apenas tentar entender o problema, explicado ao jornalista Milton Neves, sabendo também que, anos depois de Sandra, Pelé reconheceu outra filha, Flávia.

A respeito da ditadura, cabia a Pelé o papel de líder revolucionário para derrubá-la? Faça-me o favor. Sou filho e sobrinho de pessoas presas e torturadas pela ditadura. Deixo aqui uma expressão simples mas que, para mim, traduz a questão: o buraco é mais embaixo.

A simples presença de Pelé como ídolo maior do Brasil era uma postura antirracista, mesmo que involuntária. Desde fins dos anos 1950, ele é uma presença permanente no imaginário brasileiro. Se Pelé não tinha o domínio antropológico e científico do combate ao racismo, o fez do seu jeito. Sim, há 60 anos temos um ídolo negro permanentemente na TV, jornais, rádio e internet. Ok, Pelé nunca assumiu o discurso antirracista? Mas será que ele mesmo, com todo seu poder e dinheiro, também não foi vítima de racismo?

Pelé não foi apenas o maior jogador de todos os tempos, mas o Atleta do Século XXI, supremo na comparação com todos os esportes. Para quem tiver dúvidas, está tudo no YouTube e nos livros.

Dele, nunca se viu em público um único ato de rispidez, grosseria ou prepotência. Nunca. Ciente de seu lugar no topo, sempre respeitou outros grandes craques e até errou feio ao indicar seus sucessores nos gramados. Seria compreensível que fosse um homem até arrogante, com empáfia decorrente de seus feitos, mas nunca agiu assim. Nunca. Podem pesquisar.

Pelé ajudou muita, mas muita gente. Amigos como Altair, lateral campeão mundial de 1962, no tratamento de sua filha, que exigia medicação importada por longo tempo, a milhares de vítimas das chuvas em 1979, quando Flamengo e Atlético Mineiro fizeram um amistoso com renda revertida para a causa dos desabrigados. Ao jogar meio tempo para o Fla, Pelé provocou a quebra do recorde nacional de renda à época, mais um bom dinheiro para a reconstrução das casas perdidas.

Para aplaudir Maradona – gênio -, Cristiano Ronaldo – fenomenal – e mais recentemente Messi – monstruoso -, não é necessário diminuir o tamanho colossal de Pelé. Mbappé já é gigantesco, mas Pelé é Pelé. Ele está entre os gênios da raça, assim como Pablo Picasso, Miles Davis, Glauber Rocha, Jimi Hendrix e outros. Podemos gostar de futebol, apreciar novos craques, mas tendo a consciência de que Pelé, nem de longe, foi superado. Podemos ouvir o novo jazz, gostar, mas sabendo que Miles é Miles.

Aconteça o que acontecer nos próximos dias ou semanas – nunca sabemos -, eu só espero que respeitem Pelé. O Atleta do Século XX, o maior jogador de futebol de todos os tempos, o único jogador da Terra a ganhar três Copas do Mundo, é um idoso de 82 anos no que Gilberto Gil versou como o caminho inevitável para a morte. Criticá-lo não pode ser apedrejá-lo, e muitos dos que sonham com esse apedrejamento carregam muita hipocrisia nas costas.

A verdade é que, perto do que fez para o Brasil, Pelé nunca foi devidamente respeitado. Garrincha morreu bem mais jovem, mas também desprezado e ridicularizado. Pelé tem vivido mais tempo, com uma vida infinitamente mais confortável, mas com toda a carga de desmerecimento de sua trajetória, o que significa uma grande estupidez. Poderíamos ter aproveitado e não repetido duas vezes o mesmo erro.

Por fim, não adianta brigar com os fatos ou apadrinhar achismos. É inútil. Goste-se ou não de Pelé, ele ainda é o maior jogador de futebol da história. Reconhecer isso é apenas um exercício de lucidez. Só.

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Para os que insistem no terraplanismo futebolístico de reduzir os feitos numéricos de Pelé como Atleta do Século XX, proponho um simplório exercício de Estatística Documentária.

Vejamos os dez maiores artilheiros da história do Santos, excetuando-se o próprio Pelé, mais Feitiço (artilheiro nas décadas de 1920-30) e Araken Patuska (artilheiro nos anos 1920). Assim, são sete os maiores artilheiros santistas que jogaram ao lado do Rei.

2) Pepe, 405 gols em 750 jogos (1954-1969). Jogou 13 anos ao lado de Pelé.

3) Coutinho – 370 gols em 457 jogos (1958-1970). Jogou 12 anos ao lado de Pelé.

4) Toninho Guerreiro – 283 gols em 373 jogos (1963-1969). Jogou seis anos ao lado de Pelé.

6) Dorval – 198 gols em 612 jogos (1956-1967). Jogou 11 anos ao lado de Pelé.

7) Edu – 183 gols em 584 jogos (1966-1976). Oito anos ao lado de Pelé.

9) Pagão – 159 gols em 612 jogos (1955-1963). Sete anos ao lado do Rei.

10) Tite – 151 gols em 475 jogos (1951-1963). Sete anos ao lado de Pelé.

Nenhum dos nomes desta lista jogou menos de seis anos com Pelé de camisa 10, fazendo tabelas e recebendo passes. Somados, eles chegam à impressionante marca de 1.749 gols. Não é nenhum absurdo imaginar que Pelé tenha sido o principal responsável por municiar todos esses artilheiros. Que tenha sido por baixo em 40% das jogadas de gol (sabemos que foi mais): falamos de 700 gols pra começar a conversa. É claro que a lista contém vários dos maiores jogadores da história do Peixe, mas é impossível negar a participação direta de Pelé nas estatísticas de gol de seus companheiros.

Obs: apenas a título de curiosidade, dos dez maiores artilheiros da história do Barcelona, o espetacular Messi jogou apenas com Luisito Suárez (198 gols, o terceiro maior, seis anos jogando com Messi) e Samuel Eto’o (131 gols, o oitavo maior, cinco anos ao lado de Messi). Somados, dão 329 gols. Provavelmente Messi também teve expressiva participação em assistências para os colegas de equipe.

(Números sujeitos a retificações mínimas)

@pauloandel

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