O Mané Garrincha e seus perigos

Muito se falou sobre a pancadaria que as torcidas de Flamengo e Palmeiras protagonizaram em Brasília no fim de semana passado. Infelizmente, no entanto, não se está falando dos verdadeiros problemas que afligem o estádio e que, como já disse em textos anteriores no Panorama Vascaíno, podem sim levar a uma tragédia.

O estádio é um espetáculo. Dos melhores nos quais já pisei em toda a minha vida. Confortável, com uma visão perfeita de campo, tanto do anel superior quanto do inferior.

Seus problemas estão todos do lado de fora. E no policiamento despreparado.

 

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Estádio Mané Garrincha – imagem: Google Maps

Para quem não o conhece, esse é o estádio, visto de cima. A linha verde é o chamado Eixo Monumental, uma das duas vias mais importantes de Brasília, literalmente o “corpo” do avião, que é a cidade. Andando cerca de dois quilômetros para a direita, estão os ministérios, congresso, planalto. O estádio é explendidamente bem localizado. Seu acesso se dá por essa área asfaltada à direita, já que ele é cercado pelo ginásio Nilson Nelson e outros prédios menos conhecidos. No topo da foto, um pedaço do Autódromo, vizinho de fundos. Por essa via marcada em verde chega grande parte do público.

Então, os problemas:

 

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Estádio Mané Garrincha – imagem: Google Maps

A linha verde, agora, serve para mostrar o “muro” do estádio: na verdade, uma grade de tela rígida, de uns dois metros de altura, que durante a Copa do Mundo parecia ser uma estrutura temporária. O temporário virou definitivo. Acompanhe o trajeto irregular e inexplicável da tal grade. Dois ou três homens dispostos a derrubam.

A área interna à grade era onde ficavam, na Copa, bares oficiais e as lojinhas de Coca-Cola, Adidas e demais patrocinadores. Hoje em dia é apenas um espaço vazio, escuro e inútil. As catracas – que lêem os ingressos – para acesso ao estádio estão no próprio corpo do estádio, ou seja, a conferência do ingresso para acesso a este pátio interno depende do pessoal de recepção e que organiza as filas de entrada. Nos dois últimos jogos a que fui (Vila Nova x Vasco e Flamengo x Palmeiras) ninguém me pediu ingresso para estar nessa área interna. Ouvi relatos de conhecidos que usaram desse expediente para assistirem ao jogo do Vasco de graça.

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Estádio Mané Garrincha – imagem: Google Maps

Essa terceira imagem serve para mostrar a real dimensão do problema que é esse entorno. Pelo tamanho dos carros, na foto, dá pra se ter uma imensidão do pátio e do caos que se estabelece nesse estacionamento e seu entorno imediatamente após um jogo das proporções do de domingo passado. Repare que há uns míseros postes com uma única lâmpada cada, para iluminar essa monstruosidade de espaço.

A foto seguinte é minha, tirada às 18:10, na saída do jogo. Repare que estamos no crepúsculo, que o céu ainda não está totalmente escuro e que há dois postes iluminando toda a frente da foto. Um mais próximo e o outro mais distante. Eles ficam sobre estes calçamentos em meia-lua que dividem o pátio em setores. A iluminação forte, paralela à cabeça das pessoas, abaixo à direita é a iluminação do Eixo Monumental, a pista destacada em verde na 1a foto. O resultado prático disso é que todo esse pátio asfaltado mergulha numa perigosa penumbra, de você não conseguir ver direito o rosto de uma pessoa a uns dez passos de você. Policiamento? Duas tropas montadas (cavalo). E só.

Não há iluminação. Não há marcação de vagas. Não há policiamento a pé. Não há placas de sinalização para orientar ou dividir o pátio. Não há orientação para a saída. Cada um por si.

Cinco minutos após o fim do jogo, esse local é um caos, com todos que já estão em seus carros querendo sair na frente dos outros, e pessoas perdidas, andando em todas as direções, à procura de seus veículos e familiares.

Se o tumulto que aconteceu no estádio acontece durante essa saída, teremos uma carnificina.

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Estádio Mané Garrincha – a escuridão do lado de fora – imagem: JAC

Por último, deixei para falar do policiamento. O maior risco que o público presente no estádio domingo passado correu foi protagonizado pela Polícia Militar de Brasilia. Ao usarem gás de pimenta para tentar resolver o conflito no qual estavam metidos, os policiais transformaram um conflito localizado em um setor do hall do anel superior do estádio num caos generalizado em todo o Mané Garrincha. Embaixo, onde as pessoas calmamente esperavam o segundo tempo do jogo, as pessoas começaram a passar mal com a nuvem de gás de pimenta que – óbvio! – desceu do conflito. Mulheres, crianças, deficientes, pais desesperados para fugir do gás. Jogadores vomitando em campo.

Para quem nunca sentiu ao vivo, o gás não tem cheiro. Começa uma inexplicável ardência na garganta que te leva a tossir loucamente e que te dá a sensação de que sua garganta vai se fechar e você vai sufocar. Eu estava no estádio com casal de amigos (pai, mãe e dois pirralhos, de seis e dois anos de idade). O pai queria correr pro campo, como fizeram várias pessoas. Gente saiu carregada.

Não é possível que os responsáveis pelo policiamento não tenham a noção da (não) dissipação de um gás em um ambiente fechado. Passamos perigosamente perto de uma tragédia, que só não se consumou porque a quantidade de gás não foi suficiente para consolidar o pânico que se estabeleceu no anel inferior. Suponho que no anel superior tenha sido ainda pior. Fato é que o gás não pode ser usado ali.

Isso se repetiu nos dois últimos jogos no Mané Garrincha. No terceiro, as consequências podem vir a ser piores. Que os responsáveis tenham consciência. E que possamos ir assistir a um jogo de futebol em paz.

 

Até quando? (por Rods e Fabíola Lima)

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Fabíola ama futebol. Um amor herdado de seu pai tricolor, que a levava aos estádios já com apenas cinco anos de idade. Calhou de não seguir o time paterno e, apesar do enorme carinho pelo Fluminense, acompanha e investe sua torcida no Atlético Mineiro. É torcedora no âmago da palavra. Fica nervosa, chora, ri e comemora. Se emociona.

Morou e viajou por diversas cidades. Em cada uma, fez questão de conhecer e vivenciar seus estádios. Maracanã, Mineirão, Independência, Rei Pelé, Castelão, Santiago Bernabéu, Vicente Calderón, Camp Nou e foi até ao Stade de Marrakech acompanhar o seu Galo. Justamente no Mané Garrincha, em Brasília, ela presenciou o pior do futebol. Justamente na cidade onde mora e viveu a maior parte da vida, na cidade que ela escolheu para criar seus filhos.

Sua filha mais velha, já com dezesseis anos, escolheu seguir o avô e torcer pelo Fluminense. O mais novo, com cinco anos, ainda não despertou para o futebol e, apesar de jogar bola na escola, diz que não tem time, que não gosta muito. Os dois cresceram acompanhando a paixão da mãe e Fabíola quis trazê-los um pouco mais para esse universo. Uma chance para isso apareceu quando foi anunciado o confronto entre Flamengo e Palmeiras na cidade.

De ingressos comprados, os três partiram ainda cedo para o Mané Garrincha, para evitar qualquer problema. A fila já estava grande, porém não se encontrava policiais ou funcionários do estádio para dar qualquer informação. Logo surgiram filas entre filas e muitos “fura-filas”. Mas ainda assim, a entrada foi relativamente tranquila, afinal o jogo só começaria em duas horas. Ah sim, finalmente apareceram policiais e funcionários. Era o momento da revista.

A alegria de estar com os filhos dentro do estádio era tudo para Fabíola. Nem o perrengue na entrada ou água, pipoca e batatinhas superfaturadas estragariam aquele momento. A área escolhida foi a mais cara, justamente para evitar possíveis confusões.

O jogo foi bem disputado e o empate em um a um chegava ao intervalo. Foi então que o programa família se tornou pesadelo. Exatamente no lugar onde estavam, começaram a aparecer homens sem camisa e muito vermelhos, machucados. Esse pessoal passou ao lado deles, na arquibancada. Estavam na saída da passagem que levava para o anel onde ficam lanchonete e banheiros. Ponto onde todas as áreas se cruzam. Nenhum segurança, nenhum policial, apenas funcionários e torcedores. De repente, a gritaria.

Ditos representantes da Mancha Verde foram para cima dos flamenguistas em um local cheio de crianças e família comprando água e comida ou indo ao banheiro. Foi um Deus nos acuda com gente pulando para dentro da lanchonete e se escondendo nos banheiros. Lixeiras e extintores de incêndio viraram armas. Entre várias pessoas, Fabíola e seus filhos se tornaram reféns da situação, presos na arquibancada. Pela proximidade da confusão, sequer tinham para onde fugir.

Alheio à confusão, o jogo foi reiniciado enquanto as pessoas gritavam por polícia. Até que tudo o que se ouvia era o barulho das bombas de efeito moral. O spray de pimenta utilizado rapidamente chegou às arquibancadas e, pouco depois, também ao campo. Fabíola cobriu os rostos dos filhos com uma blusa de frio e tentou se proteger com a própria camisa. Em volta, cada um tentava se proteger de alguma forma. Ainda assim, todos sofreram. Tosse, olhos lacrimejando, dificuldade em respirar e dor de cabeça.

Sem ter o que fazer, Fabíola abraçou seus filhos e deu sua proteção de mãe até que tudo se acalmasse. Pela primeira vez sentiu medo em um estádio de futebol.

Quando finalmente, acabou o corre-corre e a polícia liberou a área da lanchonete, Fabíola decidiu levar seus filhos embora. Medo da situação se repetir, medo que um gol reacendesse a briga. Medo.

Deixando o Mané Garrincha, Fabíola se sentiu atravessando uma zona de guerra. Gol do Palmeiras? Colocou o menino de cinco anos no ombro e apertou o passo antes que outra confusão acontecesse. O sentimento ruim superou o medo. Agora ela sentia terror.

Já dentro do carro, voltando para casa, uma dose extra de tristeza. Seu filho pequeno, justamente quem ela tanto queria que tomasse gosto por futebol, pediu que ela nunca mais o levasse a um estádio. Pediu que nunca o fizesse assistir a um jogo de futebol.

Fabíola sabe que pode contornar essa situação. Não pode deixar o filho acreditar que o futebol se resume a selvageria. Quer passar a ele todo o sentimento que recebeu do pai pelo esporte. Mas ela tem consciência de que será uma luta difícil.

Ela ainda quer acreditar. O país do futebol não pode ser o país da impunidade. O Brasil sediou uma Copa e, em menos de dois meses, o Mané Garrincha receberá jogos pelas Olimpíadas, receberá a Seleção Brasileira. Vai ser assim também? Com ingressos para três jogos, ainda não sabe se correrá o risco de voltar lá.

Bandidos fantasiados de torcedores e polícia com total despreparo colocam em risco o futebol brasileiro. É assim há anos e é difícil de enxergar o fim disso. Só em Brasília, Capital Federal, é o terceiro caso recente.

O problema são as organizadas? O problema é a falta de preparo da polícia? É a falta de condições para o evento? A cada acontecimento como o do Mané Garrincha, além dos danos (pessoas e estruturas), o futebol morre um pouco.

Pensem como foi dolorido para a Fabíola passar por essa situação com seus filhos. Pensem como foi ouvir do seu mais novo que não o faça ver futebol novamente.

Fabíola ama o futebol. Até quando?

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O futebol derrotado (da Redação)

Neste domingo, o Palmeiras venceu o Flamengo por 2 a 1 no Estádio Nacional de Brasília, pelo Brasileirão 2016.

Mas a grande derrota aconteceu fora do gramado: por conta de uma confusão envolvendo torcedores do Palmeiras, a polícia local utilizou gás de pimenta e este se espalhou.

Numa das cenas mais lamentáveis, um pai teve que carregar rapidamente no colo seu filho cadeirante, também intoxicado.

A partida demorou mais de dez minutos além do intervalo normal entre os tempos, com muitas pessoas passando mal, inclusive jogadores.

Independentemente do que deveria ser feito ou não, o fato é que a cada dia que passa é mais dificil frequentar um estádio de futebol no Brasil, o que parece agradar quem vê na transmissão dos jogos um mero exercício de lucro.

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