“Confesso que perdi”, livro de Juca Kfouri (da Redação)

 

Testemunha vida de grandes casos da vida brasileira nos últimos 50 anos, passado pelo esporte e a política, o jornalista Juca Kfouri lança seu livro de memórias, “Confesso que perdi”.

Sócrates, CBF, Diretas Já, ditadura militar-empresarial, Corinthians, Revista Placar, Revista Playboy, Máfia da Loteria Esportiva e muito mais.

Uma degustação em PDF pode ser baixada CLICANDO AQUI.

Tiranias do futebol (por Thiago Muniz)

O futebol brasileiro parece imitar as ditaduras: desmandos, censura e às vezes até assassinatos.

O fato de ter sido um dos braços de sustentação da ditadura militar no Brasil – ainda que involuntariamente – contribui para que o futebol continue nutrindo resquícios daquele período?

Um terço dos presidentes de federações de futebol no Brasil está no poder há mais de 20 anos.

A falta de alternância nas posições de comando do esporte interfere diretamente em medidas autoritárias, como a recente “lei da mordaça”, no Rio de Janeiro?

Nos chamados “anos de chumbo”, a tirania jogou duro com atletas e torcedores que se rebelavam pelo futebol. De lá para cá, pouca coisa mudou.

As mãos que tapavam a boca dos jogadores de Flamengo e Fluminense num clássico em 2015, enfileirados no centro do gramado do Maracanã, tinham um alvo em comum. Três meses antes do protesto, a Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj) havia decretado a “lei da mordaça”. A entidade emplacou um artigo no regulamento do Campeonato Carioca proibindo atletas, treinadores e dirigentes de criticarem publicamente a competição.

dhavid normando fla flu 2015

Sintonia fina com o “padrão Fifa”, que havia imposto norma semelhante durante a Copa das Confederações em 2013 e na Copa do Mundo de 2014. “Vivemos um retrocesso”, disse à época Rodrigo Collodel, presidente da Frente Nacional dos Torcedores, movimento que cobra a democratização do futebol. “No tempo da ditadura, os estádios abrigavam as reivindicações que as pessoas não podiam fazer nas ruas. Agora estão se tornando ambientes higienizados e controlados por dirigentes.”

Repórter do diário Lance!, Bruno Cassucci sentiu na pele a ferocidade que torcedores habituaram-se a experimentar. Ele foi agredido por policiais militares quando cobria uma briga entre torcedores nas imediações da Vila Belmiro, em Santos, no fim do ano passado. As fotos que ele havia registrado da confusão foram apagadas de seu celular por um oficial. “Um PM (…) pegou uma bomba de efeito moral, puxou minha calça e a colocou dentro”, relatou. Ameaçado pelos policiais durante a abordagem, Cassucci contou que preferiu não fazer o reconhecimento dos agressores por medo de represálias.

bruno cassucci

Segundo relatório da Federação Nacional dos Jornalistas, pelo menos seis casos de violência envolvendo profissionais de comunicação em 2014 foram associados ao futebol. Todos eles seguem impunes ou mal resolvidos. A três dias do penúltimo Natal, o radialista esportivo Iran Machado foi executado com dez tiros na porta de casa em Itabaiana, interior de Sergipe. Apesar da suspeita de que alguma denúncia de Machado no rádio pudesse ter ocasionado o assassinato, e da prisão de Jefferson Chaves, o Bodão, principal acusado dos disparos, a polícia ainda não conseguiu esclarecer a motivação do crime. No mês anterior, o cinegrafista Jeferson Kickhofel registrava imagens de uma discussão na saída do gramado até ser abordado pelo diretor de futebol do Londrina, Alex Brasil. O dirigente tentou pegar a câmera de Kickhofel, que, em seguida, foi acometido por socos e chutes de outros membros da equipe.

Mentor da lei da mordaça, Rubens Lopes completa uma década na presidência da Federação do Rio de Janeiro em 2016. Reeleito por aclamação no ano passado, ele tem mandato até 2018. Seu antecessor, Eduardo Viana, que morreu em 2006, comandou a Ferj por quase duas décadas. No futebol brasileiro, 11 dos 27 presidentes das federações estaduais, que ajudam a eleger o comando da CBF, ocupam o cargo há mais de 20 anos. Quatro deles dão as cartas desde a época em que o país era governado pelo regime militar. Empossado na CBF em cerimônia fechada para a imprensa na manhã desta quinta-feira, Marco Polo Del Nero dirigiu a Federação Paulista por 12 anos. Tome Nabi Abi Chedid, Heleno Nunes e outros.

“A ditadura não inventou a cultura autoritária do Brasil, mas aprofundou-a e a expandiu para além da política. No futebol nacional, há a ‘cultura do mandonismo’. Dirigentes comportam-se como se estivessem administrando um negócio que lhes pertence, como uma fazenda”, afirma Adriano Codato, doutor em ciência política e professor da Universidade Federal do Paraná. Líder do Bom Senso F.C., que articula a inclusão da limitação de mandatos de dirigentes entre as contrapartidas da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte em tramitação no Congresso, Paulo André defende que “a alternância de poder é a pedra fundamental para o desenvolvimento do nosso futebol”.

Cartolas e seus mandatos intermináveis à frente de clubes e federações. Desmandos e monopólio de poder da Confederação Brasileira de Futebol. Censura e repressão nos estádios.

Não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito entre esses dois fenômenos. Os traços autoritários e, mais do que isso, arbitrários e despóticos presentes no futebol, seja na prática de juízes, seja na de dirigentes e técnicos, têm mais a ver com a cultura autoritária do país. Essa cultura a ditadura não inventou, mas a intensificou e expandiu para além da política. No futebol nacional, há a cultura do mandonismo: segundo o raciocínio das torcidas e de parte da crônica esportiva, o capitão deve mandar no time, o técnico no capitão (e, por extensão, em todo o time), o diretor de futebol no técnico e o presidente no diretor. Não é propriamente uma cadeia racional de comando, mas uma estrutura hierárquica, parodiando a estrutura militar (daí as metáforas “capitão”, “comandante”, etc.), que só se justifica em função dos caprichos daquele que pode mais nessa relação perversa. Com isso, quem se engana é a torcida, porque lhe contaram que ela é o patrão máximo do clube.

Esse é um efeito da cultura autoritária e da sua representação política no futebol, o mandão local. Pode ser o chefe de uma facção de torcida organizada, o dirigente sabe-tudo, o presidente do clube ou da Federação. Os dirigentes comportam-se como se estivessem administrando um negócio que lhes pertence, como uma fazenda. Isso ajuda a explicar comportamentos como os do “coronel” Eurico Miranda, do “coronel” Mario Celso Petraglia, do “coronel” Marin.

Manifestações de pessoas vestidas com camisas da seleção e bandeiras do Brasil, que pedem a volta da ditadura, se encaixam nesse contexto? No Brasil, há um fenômeno sintomático e contraditório em curso. Ele pode ser visto nas passeatas que exigem a destituição da presidente eleita em 2014. A contradição mais óbvia é protestar contra a corrupção fantasiado com a camisa da seleção da CBF.

Existe também um fenômeno que não se via desde os anos 1970: a identificação da seleção brasileira, das suas cores, da sua simbologia, com o Brasil. Como se o país se reduzisse a isso ou se essa fosse sua melhor expressão. Esse orgulho nacionalista surge, paradoxalmente, num momento em que não há muito do que se orgulhar em termos futebolísticos. Essa é a segunda contradição.

Por fim, não deixam de ser sintomáticas as manifestações autoritárias contra as regras do jogo e, consequentemente contra a democracia, desde o amaldiçoamento de “comunistas” até a representação da CBF como o máximo de brasilidade possível. A entidade pouco se importa com algo que não tenha a ver com seu lucro, que está longe de semear benefícios diretos aos clubes de futebol no país.

Fonte: Revista Placar, Jornal Lance e Bom Senso FC.

Imagem: Dhavid Normando