A Copa União e a grande ilusão (por Paulo-Roberto Andel)

(Com a colaboração fundamental de Flávio Souza e Edgard Freitas Cardoso)

A gente via os campeonatos brasileiros cheios de times e jogos. Nos anos 1970 houve exagero, com quase 100 clubes. Nos 1980 passou para 40. Todo mundo reclamava do calendário, do excesso de jogos, que só devia ter partidas no final de semana. De toda forma, o esporte era uma paixão popular que dominava nosso país continental, com estádios abarrotados.

Veio a TV. As cotas. Numa grande costura, na virada de 1987 veio a Copa União. Todos os problemas do nosso futebol estavam resolvidos: criou-se uma divisão de elite, cópia do então Campeonato Italiano, para dominar a atenção do país inteiro. O resto já não importava. Ao mesmo tempo, começou timidamente um lote de movimentos para que os estádios tivessem menos gente, compensada por ingressos majorados – luta encampada pelo então diretor de futebol da CBF, Eurico Miranda.

Se a Copa União deu folga no calendário, por outro lado nasceu a interessante Copa do Brasil. No Continente, a Supercopa dos Campeões da Libertadores e a Copa Conmebol. A folga, claro, foi para o espaço.

Pouca gente percebeu que ali poderíamos ter embarcado numa verdadeira canoa furada. Não por causa das novas competições, que fique claro.

Com a elitização do futebol brasileiro, clubes importantes do cenário nacional foram jogados aos tubarões e nunca mais retornaram à órbita original. Podemos falar do Pará, da Bahia, de Pernambuco, cujos principais times passaram ao comportamento de gangorra nas séries, ou mesmo nunca mais voltando à tona. Estados como Mato Grosso do Sul e Amazonas, que tinham cenários locais disputados, naufragaram. E mesmo nos Estados onde prevaleciam os grandes clubes brasileiros, os campeonatos locais foram esvaziados e as equipes de menor investimento despencaram. O resultado foi nefasto, porque afetou diretamente a formação em larga escala de jogadores talentosos – e não é à toa que desde 2002 os fora de série desapareceram do futebol brasileiro.

Mais tarde, outros movimentos como a espanholização provocada pela desigualdade nas cotas de TV afetaram a própria Série A.

Hoje, o calendário continua extremamente apertado. Nada mudou nesse sentido. As competições se amontoam, os clubes abandonam as campanhas para focar em uma única. As dívidas se acumulam. E curiosamente, um dos xodós dos torcedores brasileiros é a Copa Libertadores, que tem um formato de grupos e mata-mata que lembra os antigos certames brasileiros.

Durante a semana, à tarde, em qualquer boteco que tenha um aparelho de televisão, torcedores acompanham atentos os jogos da Champions League, também no mesmo formato dos Brasileiros de outrora.

Pensemos no America, no Bangu, na Portuguesa de Desportos, em Guarani e Ponte Preta, em Operário de Campo Grande e Comercial, no Nacional de Manaus e no Rio Negro. Em Sport, Náutico e principalmente o Santa Cruz. Em Tempo, Paysandu e Tuna Luso. No Paraná Clube e até mesmo no Coritiba. No Juventude. No Vitória.

O sonho da Copa União pode ter gerado muitas fortunas pessoais, mas para a maioria dos jogadores e dos clubes brasileiros, parece ter sido uma grande ilusão.

Espanholização (por Robertinho Silva)

O futebol brasileiro respira por aparelhos. Perdemos em competitividade e abrangência. Seguimos cada vez mais escavando o abismo, tendo em vista o projeto de hierarquização artificial que está em curso desde 2011, após a quebra do Clube dos 13.

De 1987 até 2011, o C13 foi o responsável pela distribuição dos recursos entre os clubes que disputavam a principal divisão do futebol brasileiro. Não era a divisão ideal, mas pelo menos tínhamos um caminho.

Até que a Record e a Rede TV surgiram em 2011 como principais interessadas na compra dos direitos de Transmissão do Campeonato Brasileiro, justamente no momento em que o CADE resolve cassar a liminar de renovação automática da Globo. É aí que começa um verdadeiro racha nos bastidores.

No livro do jornalista Rodrigo Capelo (“O Futebol como ele é”) o próprio Andrés Sanchez explica como rachou o Clube dos 13: “O Ricardo Teixeira me chamou e falou ‘Andrés, o Kléber Leite [ex-presidente do Flamengo] quer ser candidato ao Clube dos 13. Se ele ganhar, eu passo o futebol todo para o Clube dos 13. Vocês fazem liga, o que quiserem. Eu não vou dar para aqueles loucos, mas para o Kléber eu passo o futebol todo’. Eu comprei a ideia”, revela Andrés no livro.

Os loucos a quem Andrés Sanchez se referia eram Fábio Koff, presidente do Clube dos 13 e ex-presidente do Grêmio, e Juvenal Juvêncio, falecido em 2018 e ex presidente do São Paulo. “O Ricardo continuou com o futebol na CBF, como está até hoje. Eu tinha a promessa dele de deixar a gente fazer uma liga, ter uma independência maior no futebol”, reforça Andrés, dizendo que tudo isso não foi possível “porque o Kléber não ganhou”. E completa: Teixeira não queria dar tal autonomia para Koff e cia. porque achava que eles “não fariam o que tem que ser feito”, finaliza Andrés.

Dali em diante, o Clube dos 13 ruiu. As negociações de direitos de transmissão passaram a ser de forma individual, e não mais coletivas como foram no passado. A partir dali, começou a surgir a “Espanholização” do futebol nacional, onde dois clubes passaram a ser privilegiados em tudo, como exposição maciça de marcas na mídia, acesso a financiamentos, patrocínios com dinheiro público, cotas de transmissão superfaturadas, entre outros benefícios. Os demais clubes seriam apenas coadjuvantes.

O Campeonato Brasileiro não ganhou um veículo de transmissão. É um veículo de transmissão que possui o produto campeonato brasileiro. Os interesses comerciais e a politicagem venceram os méritos esportivos. A concentração óbvia e absurda de recursos, o favorecimento explícito a esse ou aquele clube, é de enojar qualquer membro diretor do Cartel de Cali. A predisposição em socorrer somente aos que interessam é gritante por parte da detentora do campeonato. Um misto de assessoria de luxo e comitê de crise nas horas vagas.

Uma concessionária de serviço público passou a mandar e desmandar no futebol, impondo a hierarquia que lhe convém entre os clubes. Pagando mais pra um e menos pra outros, conforme conveniência sob a escusa mentirosa e falaciosa de MAIS AUDIÊNCIA. Passou a escalar jogos quinta às 19h, quarta às 21h30 ao bel prazer. E sempre com uma tabela mais interessante pra A, no início do campeonato, do que para os B, C, D e Es que fazem parte do mesmo campeonato.

O futebol que em outrora era fascinante e emocionante, se tornou um torneio de obviedades e cartas marcadas, onde todos já sabem o final. Pontos corridos no Brasil, é apenas a regularidade dos mais ricos, que enriquecem com cota superfaturada da própria emissora que transmite o campeonato.

A Espanholização do Futebol foi minuciosamente planejada. Hoje, estamos apenas presenciando o ápice. Não se iludam, pois, ninguém na Rede Globo contava que o Palmeiras fosse aprontar uma grande retomada com Paulo Nobre e Crefisa, deixando um dos clubes alvos da emissora a ver navios. Ninguém esperava que o Cruzeiro fosse se atolar em dívidas para montar um elenco fortíssimo e tirar dois títulos da Copa do Brasil dos “queridinhos”.

Ninguém esperava que os “4Rs” (Rubens e Rafael Menim, Ricardo Guimarães e Renato Salvador) fossem oxigenar o caixa do Atlético Mineiro trazendo grandes reforços, equacionando dívidas e ganhando a Tríplice Coroa em 2021.

A tendência é que Corinthians, Flamengo e Palmeiras continuem por longo tempo disputando todos os títulos, mais o Galo e o São Paulo correndo por fora beliscando uma coisa aqui e outra acolá, que é para a coisa não ficar tão sem graça. Quanto ao Corinthians, não se preocupem. Logo, logo aparece um rio de dinheiro por lá, semelhante ao que aconteceu na Praia do Pinto em meados de 2012.

Hoje estamos vivendo uma nova fase do Futebol Brasileiro. Visando driblar o Projeto de Hierarquização artificial e minorar suas dívidas, alguns clubes resolveram sair do modo associativo, e entrar para o modelo das SAFs (Sociedade Anônima do Futebol). Tivemos o Botafogo, que vendeu 90% das ações para o americano John Textor; o Vasco, que vendeu 70% das ações para Josh Wander, dono da 777 Partners, e o Cruzeiro,p que vendeu 90% das ações para o ex-jogador e empresário Ronaldo Fenômeno.

Logo após esses movimentos no mercado, vi a maior sessão gratuita de hipocrisia da história. Os mesmos que colaboraram tanto para a “Espanholização”, que apoiaram a destruição do Clube dos 13, agora falam em “União, Equilíbrio, Fair Play Financeiro e formação de Liga”. Novamente, os clubes se dividiram. De um lado temos o Grupo Libra, que defende a manutenção do status quo. Onde o preceito é “Uma vez favorecidos, sempre favorecidos”.

A cultura do futebol brasileiro é a formação de oligopólios, é concentrar riquezas. Nunca foi no sentido de distribuir, visando um equilíbrio. Na Europa, tivemos uma tentativa de Liga, que graças a Deus não foi adiante. Um detalhe que diz muito; no Brasil, a panela já foi formada por 13 clubes. Agora, apenas seis. É sempre o “melhor para o seu umbigo” camuflado de “bom pra todo mundo”.

Do outro lado, temos o grupo Forte Futebol que visa uma divisão mais justa e igualitária, visando retomar o equilíbrio perdido. São dois lados antagônicos, onde um lado busca socializar a miséria, enquanto o outro busca dividir riqueza.

Os mais favorecidos dizem que “tem que continuar isso aí”, agindo pesado contra qualquer mudança. O monopólio é assim, parte do princípio que não é aberta a outros a participação no grupo daqueles que controlam o sistema e determinam as regras que o operam. O teto de cada um é pré-estabelecido pelos próprios organizadores deste sistema, e este não tem interesse em desenvolver o futebol brasileiro, mas sim um ou dois clubes como se eles representassem o todo. Até hoje, nada foi constituído para que os melhores e mais organizados obtenham êxito, e sim, que os ‘‘escolhidos” sejam favorecidos de inúmeras formas até que confirmem sua “força”. Típica meritocracia à moda brasileira.

“Equilíbrio e Campeonato justo” no sistema brasileiro a moda espanhola seria assim;

Flamengo – Real Madrid

Corinthians – Barcelona

Palmeiras – Atlético de Madrid (aquele time que de vez em quando atrapalha a hegemonia da dupla “querida”.)

O restante dos clubes; Sevilla, Villareal, Málaga, Numancia, Cádiz, Valladollid, Huesca, Rayo Vallecano, Espanhol etc.

Segundo alguns “jornalistas” e blogueiros da Globo, o “Campeonato atende a um mix de equilíbrio técnico e audiência”. Eu vos pergunto: um clube receber infinitamente mais de cota melhora o campeonato em quê? Quanto maior for o nível técnico de todos os competidores, mais lucrativo o campeonato é. Isso é o óbvio, ora bolas.

Durante mais de uma década de desequilíbrio financeiro, era muito comum ver jornalistas escrevendo inúmeras matérias sobre “austeridade no passado” e “planejamento financeiro”. Segundo eles, cota de transmissão superfaturada, patrocínios estatais em troca de lobby político é “Gestão Transparente”. Em contrapartida, empréstimo a juros baixos e patrocínio privado, segundo eles é “mecenato”.

Curioso que o poderio econômico destes clubes só passou a existir depois da quebra do Clube dos 13, onde passaram a receber cotas de TV absurdas e ordinárias e patrocínios em bases muito favoráveis a estes clubes. Tudo de forma artificial e proposital para gerar desequilíbrio. Eu vos pergunto; porquê não criaram o desequilíbrio internamente com receitas de marketing, bilheteria, sócios, camisas vendidas e etc?

Criaram “poderio financeiro” com dinheiro superfaturado da mesma emissora que monopoliza as transmissões da competição. É como se tivesse uma corrida de 500 metros, e por escolha da TV, um dos competidores quando disparasse o tiro da largada, já largasse a 10 metros da linha de chegada. Tem dúvidas de quem vai vencer essa corrida?

Não há nenhum critério lógico, científico, técnico, matemático, físico ou algo que o valha para toda essa distorção. É tudo baseado em números que não correspondem a realidade.

Ou mudamos isso urgentemente, ou mudaremos a alcunha de “País do Futebol” para “País da Emissora de TV”.

O contraexemplo da formula 1 (por Zeh Augusto Catalano)

Agência O Globo

Domingo à tarde, Vasco e Botafogo, os dois líderes e melhores times do Campeonato Carioca, disputavam, em São Januário,  um jogo que tinha tudo para ser bem interessante – como foi. Mas não para o torcedor. Oito mil testemunhas presenciaram o cotejo. As sociais vazias são mais um alerta de que as coisas vão mal, obrigado, no mundo do futebol. E este não é um fenômeno brasileiro. Há exceções – Inglaterra e Alemanha – mas é muito comum ver campos às moscas mundo afora em praças importantes como Itália e Espanha.

Mais que campos vazios, há um desinteresse crescente pelo esporte na TV também. Domingo, assisti sozinho o jogo no bar de um clube. Durante o segundo tempo, apenas dois cidadãos vieram ver o que passava na televisão. O clube estava cheio. Ninguém deu bola pro jogo.

Até 1994, a Formula 1 era uma das paxões do brasileiro. As pessoas não saíam de casa. Tinham de ver a corrida do Senna. Naquele fatídico primeiro de maio, essa paixão virou tristeza. Mas se engana quem pensa que foi a morte do ídolo que transformou a F1 nesse espetáculo insuportável de hoje. A derrocada começou com um super-carro da Ferrari, que pulverizou os demais, ganhando todas as corridas do ano. Somou-se a isso uma escolha catastrófica de regulamento dos carros, transformando as corridas numa enfadonha procissão. Lembro-me de Galvão Bueno vibrando com trocas de pneus. As únicas ultrapassagens se davam nos boxes.

Em suma, o que a Formula 1 tinha de melhor –  equilíbrio, cracaços no volante -, desapareceu. Em vez de três ou quatro carros brigando por vitória, sete ou oito pilotos, um alemão Dick Vigarista desfilando sua arrogância e passeando sem ameaças.

O equilíbrio e a emoção desapareceram. Com isso, claro, o público despencou. Patrocínios também.

O exemplo está ai. O futebol segue a passos largos o mesmo caminho de desequilíbrio. É a famosa espanholização. Tomara que não seja tarde demais.